O Centro de Estudos Judiciários forma magistrados, mas “não pode mudar mentalidades”

O director do CEJ diz que a sensibilização dos juízes para a violência doméstica e outras questões actuais têm sido uma prioridade.

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Manifestação a propósito do Dia Internacional da Mulher, na sexta-feira LUSA/José Coelho

Adriana Calcanhotto, José Jorge Letria e Marisa Liz. São alguns dos nomes que já marcaram presença no Centro de Estudos Judiciários (CEJ) para celebrar o Dia Mundial da Poesia. O director do instituto responsável pela formação dos juízes, João Silva Miguel, nota que as sessões — a par de muitas outras, como aulas de ética e deontologia ou conferências mensais subordinadas a diferentes tópicos como arte, animais ou amor — contribuem para dar a estes profissionais “um perfeito conhecimento daquilo que é o ser magistrado, não só a componente técnica, mas também uma dimensão de mundividência que lhes permita conhecer o mundo”.

Mais um exemplo: “Este mês vou ter o José de Guimarães, um escultor, que nos vai falar sobre o que ele entende que deve ser um juiz ou um magistrado, do que é que ele espera da Justiça e como a vê.” 

Nos últimos dias, milhares de mulheres (e homens) saíram à rua em manifestações por todo o país a propósito do Dia Internacional da Mulher. A violência doméstica e as polémicas sentenças do juiz Neto de Moura (que decidiu retirar a pulseira electrónica a um homem que rebentou um tímpano à mulher ao soco e que atribuiu pena suspensa a dois homens que agrediram a companheira com uma moca de pregos, citando a Bíblia na sentença que proferiu) não ficaram esquecidas. Falta formação nesta área?

O responsável do CEJ diz que há vários workshops e cursos. Alguns são organizados em parceria com a Equipa de Análise Retrospectiva de Homicídio em Violência Doméstica. Cada sessão tem entre 20 e 30 participantes que analisam, em conjunto com um dinamizador, um caso de violência doméstica e tudo o que esteve bem e mal na actuação das forças policiais e dos tribunais. 

Também Mário Morgado, vice-presidente do Conselho Superior de Magistratura (órgão que puniu Neto de Moura com uma advertência registada por causa do acórdão com citações da Bíblia), sublinha que “a formação dos juízes portugueses é contínua e exigente”. Sim, “é preciso acentuar o esforço de formação em determinadas matérias”. Mas “a ideia de que se faz pouco é errada”.

“A formação neste plano sempre foi uma prioridade”, garante por seu lado o ex-director do CEJ, Pedro Barbas Homem. “A Justiça tem de estar preparada para responder de forma articulada a estes problemas.”

Apesar destes esforços, João Silva Miguel nota que “os juízes, tal como todas as pessoas da sociedade, têm a sua formação e a sua educação”. “Muita da educação das pessoas de hoje e daquelas da idade [63 anos] do juiz Neto de Moura tem muitos laivos da nossa tradição judaico-cristã. O que nós temos aqui são problemas de mentalidades”, refere. E “estas mentalidades não se mudam de um momento para o outro, nem é o CEJ que as pode mudar”. Isso seria, acrescenta, “uma lavagem ao cérebro que não é função do CEJ fazer”. O que cabe ao CEJ fazer “é dar os instrumentos necessários para que um técnico do direito possa responder e resolver os casos que tem perante si”.

Entrevista de juiz “é ruído”

O bastonário da Ordem dos Advogados, Guilherme Figueiredo, lembra que “a formação é fundamental”, mas que quem decide sobre casos de violência doméstica “tem de ter uma competência pessoal para este tipo de assuntos”. Em comentário à entrevista de Neto de Moura ao Expresso, publicada ontem - o juiz afirma que os casos que julgou “não são particularmente graves”, que não é “despropositado citar a Bíblia” numa decisão e que não se considera “machista” - o bastonário critica o magistrado: “Pode ser muito bom tecnicamente, mas tem um problema de competências a outro nível.” Guilherme Figueiredo é taxativo quanto à entrevista: “É desnecessária. É ruído”, contém referências “infelizes” que “trespassam alguma inconsciência em relação à questão de fundo que é a desvalorização da violência doméstica”.

Escusando-se a comentar a entrevista, o actual director do CEJ defende que “uma coisa são as decisões outra coisa é argumentação” que os juízes usam nos acórdãos. E acrescenta: “Às vezes, alguma da argumentação não chega a sê-lo. São desabafos, estados de alma que se transmitem para ali. A melhor afirmação que já ouvi sobre isso foi da ministra da Justiça. As sentenças são documentos da República. Devem ser os documentos mais enxutos possíveis.”

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