A vitória de Green Book foi um fim agridoce para Roma nos Óscares de 2019

Numa noite que falou muito espanhol, Alfonso Cuarón foi o Melhor Realizador, mas Roma ficou-se pelo Óscar de Filme Estrangeiro. Green Book foi o Melhor Filme, Bohemian Rhapsody surpreendeu com maior número de prémios, entre os quais para Rami Malek, e Olivia Colman tirou o Óscar de Melhor Actriz a Glenn Close. Spike Lee recebeu o primeiro Óscar competitivo.

Fotogaleria
Peter Farrelly, realizador de Green Book Reuters
Fotogaleria
Alfonso Cuarón com o seu quarto Óscar Aaron Poole/AMPAS/EPA
Fotogaleria
Spike Lee em palco com o seu Óscar de Argumento Adaptado MIKE BLAKE/Reuters
Fotogaleria
Lady Gaga recebeu o Óscar de Canção Original ETIENNE LAURENT/epa
Fotogaleria
Olivia Colman, A Favorita MIKE BLAKE/Reuters
Fotogaleria
A equipa de produção de Green Book MIKE BLAKE/Reuters
Fotogaleria
Lady Gaga e Bradley Cooper a interpretar "Shallow" MIKE BLAKE/Reuters
Fotogaleria
Rami Malek e o seu Óscar ETIENNE LAURENT/EPA

Se o planeamento da cerimónia dos Óscares de 2019 pareceu um mau filme, a entrega de prémios foi um thriller que guardou a definição do rumo da história para o final da noite, quando foram entregues os Óscares de Melhor Filme e Melhor Realizador. Roma não mudou o mundo, mas deu o segundo Óscar de realização a Alfonso Cuarón, e Green Book surpreendeu em parte o mundo com a sua estatueta de Melhor Filme. Os 91.ºs Óscares distribuíram ainda os seus prémios por Bohemian Rhapsody, com Rami Malek como seu único rosto, e deram o palco a Spike Lee e Olivia Colman numa cerimónia que em parte falou espanhol, que falou de raça e de imigrantes e que se dispersou entre o passado e o futuro.

Na verdade, havia já uma pista fiável da vitória de Green Book: Um Guia para a Vida, um filme mais tradicional do que alguns dos seus concorrentes. Recebeu o prémio da Guilda dos Produtores, que tende a antever o que escolherá essa classe profissional nos boletins dos prémios da Academia no mais importante prémio do ano. Mas, horas antes, a estatueta de Melhor Filme Estrangeiro tinha ido para Roma, filme Netflix adorado pela crítica e interessante caso para análise de uma indústria em mudança à beira do futuro. Depois, nos últimos minutos, Alfonso Cuarón recebia o seu quarto Óscar — e segundo da noite —, desta feita pela realização de um filme que foi o Leão de Ouro do Festival de Veneza de 2018, a preto e branco, em espanhol e dialecto mexicano. O cenário parecia ser aquele que o The New York Times resumira no início da noite: “Pela primeira vez desde que há memória, Hollywood não tem mesmo ideia de que filme vai ganhar o prémio de Melhor Filme nos Óscares”. Mas o desfecho da história foi mais clássico.

“A história sobre amor, apesar das diferenças”, como descreveu o seu realizador Peter Farrelly, e da amizade entre o pianista real Don Shirley, um negro de sucesso no Sul da América em 1962, e o seu guarda-costas e motorista branco Tony Lip teve o tom conciliatório que a Academia procurava. O filme deu ainda o segundo Óscar de Actor Secundário a Mahershala Ali, depois do prémio por Moonlight em 2017. E, apesar das críticas da família de Shirley à fidedignidade da história, o Óscar de Argumento Original também foi para o filme, construído com base nas histórias de Tony contadas ao filho, Nick Vallelonga, que assina o guião com Farrelly e Brian Hayes Currie.

Numa temporada em que a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood teve problemas vários na definição do que seria a sua noite mais visível, ela quis começar rápida e económica. Sem anfitrião, arrancou de pé com um mini-medley dos Queen, com Adam Lambert na voz, que pôs a plateia de estrelas a tentar acompanhar o rock dos anos 80 da banda de We are the champions. Antes de a noite terminar, já se via como dava a vitória numérica ao filme que foi um sucesso de bilheteira: dois prémios de som, um de montagem e o melhor actor Rami Malek pela sua interpretação de Freddie Mercury.

Malek foi o único rosto de Bohemian Rhapsody, depois de o realizador Bryan Singer ter sido despedido do filme e posteriormente acusado de abuso sexual. O seu nome nunca foi referido ao longo da cerimónia, da qual esteve ausente, que fez também de Malek símbolo de uma das narrativas da noite: “Fizemos um filme sobre um homem gay, um imigrante, que viveu a sua vida sem desculpas. (...) Sou filho de imigrantes do Egipto e um americano de primeira geração. A minha história está a ser escrita agora”.

Nas últimas semanas, a Academia esforçou-se por passar uma mensagem — a ideia da celebração de várias culturas e do abraço fraterno de Hollywood ao cinema de outros países. Encheu a sua cerimónia da língua espanhola, pôs-lhe legendas e teve um número- recorde de mulheres e negros a subir ao palco dos Óscares para receber prémios.

Javier Bardem, na apresentação do Melhor Filme Estrangeiro, garantia, legendado: “Não há fronteiras nem muros que possam limitar o engenho ou o talento”. Alfonso Cuáron, quando recebeu esse Óscar, brincou: “Cresci a ver filmes em língua estrangeira, e a aprender tanto com eles, a ser inspirado por filmes como Citizen Kane, O Tubarão, O Padrinho”. Roma foi o nono filme do México a ser nomeado e o primeiro a vencer o Óscar de Melhor Filme Estrangeiro; Alfonso Cuarón tornou-se no primeiro realizador a receber o prémio de Melhor Fotografia, o seu primeiro de uma noite que, ainda assim, terminaria de forma agridoce para a sua história de homenagem à sua ama.

“Quero agradecer à Academia por reconhecer um filme centrado numa mulher indígena, uma dos 70 milhões de trabalhadores domésticos no mundo sem direitos laborais, uma personagem historicamente relegada para um papel de bastidores no cinema”, destacou quando recebeu o Óscar de realização. Não voltaria ao palco, porque Roma, a grande aposta Netflix que poderia coroar os esforços da plataforma para ser vista como um estúdio, ficou pelo caminho, tal como Bohemian Rhapsody, Black Panther, BlacKkKlansman – O Infiltrado, Vice, A Favorita ou Cold War – Guerra Fria. Num ano em que se tentou inovar, a inovação não foi suficiente para mudar radicalmente o cenário. “Os prémios da Academia estão a tentar mudar, mas a história e a simples demografia e, há que dizê-lo, um medo e ressentimento quanto ao Netflix, que distribuiu Roma, são fortes”, comentou o crítico do The New York Times Wesley Morris.

O primeiro Óscar de Spike Lee

Ainda assim, 2019 foi o ano em que Spike Lee venceu um Óscar. O realizador já tinha um Óscar honorário, mas desde 1990 que aguardava por isto. “Já devia ter acontecido antes”, dissera na passadeira vermelha, trazendo a representação da negritude no corpo, dos ténis dourados Air Jordan 3 ao fato roxo e o símbolo ao pescoço que são sinónimos de Prince, passando pelos anéis que soletram “Love” e “Hate” que remetem para o seu filme Não Dês Bronca (Do the Right Thing), nomeado apenas para Actor Secundário e Argumento Original em 1990 e um dos casos frequentemente citados de injustiça nas nomeações e ausência de prémios da Academia.

Candidato nas categorias de realização e filme, recebeu o prémio que tende a ser entregue a realizadores/autores mais arrojados — o Óscar de Argumento, neste caso Argumento Adaptado. Aproveitou o palco, depois de uma temporada bem-comportada, para falar de como os negros foram “roubados a África e trazidos para a Virgínia, e escravizados”, para louvar os seus antepassados e para fazer o único apelo político directo da noite: “A eleição presidencial de 2020 está ao virar da esquina. Vamos todos mobilizar-nos e ficar do lado certo da história. Façam a escolha moral entre amor versus ódio. Do the right thing [façam a coisa certa]! Sabem que eu tinha de meter isto”, riu-se.

Nos bastidores, Lee foi convidado a comentar a justiça da ausência de nomeações para o seu filme de culto em 1990 e a vitória de Green Book. “Cada vez que alguém está a ser motorista de alguém, eu perco”, riu-se, em referência à vitória de Driving Miss Daisy em 1989, uma história de conciliação racial cuja estrutura tem sido muito comparada a Green Book, mas desta feita com Morgan Freeman a conduzir para Jessica Tandy. Sobre o prémio para o filme de Peter Farrelly, disse: “O árbitro tomou uma decisão errada”.

Foto
Driving Miss Daisy DR

Óscares tão rápidos

Depois de anos #OscarsSoWhite, a Academia queria uns Óscares tão rápidos, mas, sem anfitrião depois da dispensa de Kevin Hart por comentários homofóbicos, a cerimónia acabou por estar cerca de três horas e 20 minutos no ar e de ter pouco para quem procura o humor na noite engalanada dos Óscares. A noite em que a indústria do cinema se leva muito a sério ficou-se pela amostra dos anfitriões que poderia ter tido: depois dos Queen, Tina Fey, Maya Rudolph e Amy Poehler deram as boas-vindas aos espectadores. Insistiram que não eram anfitriãs, apenas apresentadoras, como mais tarde seria Barbra Streisand a mostrar BlacKkKlansman, ou a tenista Serena Williams a falar de Assim Nasce uma Estrela (que deu um Óscar a Lady Gaga com a Canção Original Shallow), ou o guitarrista Tom Morello a falar de Vice, que se ficou pelo prémio de Caracterização (Se Esta Rua Falasse também se ficou pelo prémio de Actriz Secundária para Regina King).

Mas as três actrizes, produtoras e argumentistas fizeram a versão miniatura do habitual monólogo de abertura. Maya Rudolph avisou: “Só um update rápido — não há anfitrião esta noite, não haverá a categoria de Filme Popular e o México não vai pagar pelo muro”. Tina Fey atirou: “Roma está no Netflix? O que é que se segue, o meu microondas faz um filme?”. Mais tarde, outra amostra de anfitriões possíveis, com o humorista Trevor Noah a apresentar Black Panther, “[que é] talvez um herói africano, mas a sua história e atracção são universais” — o filme deu dois Óscares a duas mulheres negras que foram as primeiras a ser nomeadas vencedoras da cobiçada estatueta, Ruth Carter (Guarda-roupa) e Hannah Beachler (design de produção).

Foi uma noite de tom apressado que não se traduziu no relógio, em que até Lady Gaga e Bradley Cooper subiram directamente da plateia para o palco para a interpretação de Shallow. Foi também uma noite em que “um filme sobre menstruação ganhou um Óscar”, como se espantava a sua realizadora, a indiana Rayka Zehtabchi, sobre a curta documental Period. End of Sentence., produzida pelo Netflix sobre as limitações na educação feminina na Índia.

Os prémios dispersaram-se, à semelhança dos últimos anos em que não há um fio condutor nas escolhas dos votantes. Foi uma temporada de prémios em que Olivia Colman foi A Favorita da corrida até Glenn Close (A Mulher) a substituir na liderança para, afinal, perder mesmo para a actriz britânica. Colman ria e chorava, incrédula, ao agradecer pelo reconhecimento do seu papel como rainha Ana. Os Queen não voltaram ao palco, mas no fim destes Óscares quase ecoava o início de Bohemian Rhapsody, a canção: “Is this the real life? Is this just fantasy?”.
 

Sugerir correcção
Ler 2 comentários