Esta noite, luta-se pelo futuro: os Óscares estão em crise ou em transição?

“Uma temporada de prémios horrenda” desemboca esta noite nuns Óscares sem rosto e talvez sem rumo. Ainda assim, estes prémios continuam a ocupar "um lugar único no nosso imaginário colectivo". E a constituir o patamar definitivo de consagração para uma velha indústria que pode sair desta 91.ª edição derrotada pelo outsider Netflix.

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Sem anfitrião e, dizem os críticos, sem rumo, os 91.ºs Óscares chegam este domingo para uma noite que pode ou não ser de surpresas, mas que, independentemente daqueles que vierem a ser os premiados, já é seguramente de crise e transição. Este ano, mais do que a raça, o género, o assédio ou a guerra cultural, são os Óscares e a própria Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood que estão sob escrutínio. O que dizem eles, hoje, sobre Hollywood, sobre o cinema e sobre a forma como consumimos histórias? A mais relevante das cerimónias ditas irrelevantes ainda importa porque daqui vemos o futuro.

“Apesar da cacofonia de distracções culturais – mais de 500 novas séries por ano só nos EUA, filmes gigantescos de super-heróis a estrearem quase todos os meses, e os conteúdos faça-você-mesmo das redes sociais –​, os Óscares ainda ocupam um lugar único e absolutamente mágico no nosso imaginário colectivo”, garante ao PÚBLICO Tom Nunan, professor na Escola de Teatro, Cinema e Televisão da UCLA e produtor executivo de Colisão, que recebeu o Óscar de Melhor Filme em 2006. Ele, que tem um Óscar na mão, defende o valor da instituição. Mas lamenta o seu presente.

Para os espectadores que estavam a assistir, a sucessão de decisões e contra-decisões acerca da gala desta madrugada foi como um mau filme. A Academia tentou impor uma nova categoria, a de Melhor Filme Popular, que deixou cair após o ultraje geral; propôs também que quatro Óscares (Fotografia, Montagem, Curta de animação e Maquilhagem e cabelos) fossem entregues durante os intervalos, modelo que abandonou perante a revolta do sector; e quis ainda que apenas as duas canções nomeadas mais conhecidas tivessem direito às tradicionais actuações ao vivo na gala, tendo recuado perante a recusa de Lady Gaga, co-intérprete do êxito Shallow (Assim Nasce Uma Estrela), em participar nesse redux.

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Assim Nasce uma Estrela

Pelo meio, a Academia anunciou um anfitrião, Kevin Hart, que viria a ter de afastar na sequência da indignação gerada em torno de declarações e piadas homofóbicas por ele feitas no passado. A primeira cerimónia dos Óscares, um jantarinho no Hotel Roosevelt em 1929, foi apresentada por Douglas Fairbanks e William C. deMille, irmão do todo-poderoso Cecil B. DeMille; 90 anos depois, esteve prestes a descambar numa versão dos Óscares à la Cecil B. Demente, para citar a comédia negra que John Waters realizou em 2000.

Os últimos meses foram “um desastre”, escreveu o crítico Sean Fennessey, do site The Ringer; foi “uma temporada de prémios horrenda”, corroborava esta semana a Hollywood Reporter, dissecando a “atmosfera ‘tudo pode acontecer’" que rodeia a cerimónia deste ano. Vai haver Serena Williams a apresentar filmes e um sortido de heróis e de super-heróis. E a sensação de que o chão foge debaixo dos pés.

“É totalmente justo dizer que os Óscares estão em transição. Todos os anos parece haver um ajustamento ou algo a ‘arranjar’ para tentar tornar a experiência simultaneamente mais popular para os espectadores da televisão e mais representativa do espectro de filmes que se estreiam”, reflecte Tom Nunan, que dirige a produtora de cinema independente e de televisão Bull’s Eye e fundou o canal CW. As críticas deste ano – porque todos os anos tem havido críticas – evidenciam, na sua opinião, "as dificuldades em torno da monetização de um prémio versus a celebração do prémio em si". Mas "a comercialização dos Óscares começou no início dos anos 1990, quando a Miramax passou a criar épicas e caras campanhas [de promoção dos filmes] até aí inéditas”, recorda, por email, ao PÚBLICO. “E de repente o que era uma noite com classe tornou-se um espectáculo grotesco. É lamentável, mas é uma prova do enorme valor que ainda tem ganhar um Óscar.”

O comportamento errático da Academia, depois das polémicas acerca da representatividade que emergiram nos anos #OscarsSoWhite e #MeToo e do fiasco do envelope trocado em 2017, foi tão discutido que Dawn Hudson, directora executiva da Academia, pôde usar isso a seu favor: “Uma coisa que aprendemos nos últimos meses é que as pessoas sentem uma grande ligação com os Óscares. Toda a gente tem uma opinião e uma paixão”, disse ao New York Times.

A sua crise de identidade – “Os Óscares têm vergonha de ser os Óscares?”, perguntava o New York Times – e a sua crise de audiências – a emissão de 2018 foi a menos vista de sempre, com 26,5 milhões de espectadores nos EUA, não existindo números fiáveis sobre as audiências a nível global – agravam um contexto em que o consumo de cinema está em mudança.

Mas, ao mesmo tempo, os 91.ºs Óscares exibem sinais de vitalidade. Pela primeira vez um filme Marvel (Black Panther) e uma produção Netflix (Roma) estão na corrida para o Óscar de Melhor Filme. E Spike Lee viu-se finalmente nomeado para Melhor Realizador (BlacKkKlansman), categoria em que a crónica ausência de mulheres se repete mas que parece ter assimilado as reivindicações de mais diversidade: Adam McKay, o realizador de Vice, é este ano o único americano branco. Surge ladeado pelo afro-americano Spike Lee, pelo polaco Pawel Pawlikowski (Cold War – Guerra Fria), pelo grego Yorgos Lanthimos (A Favorita) e pelo mexicano Alfonso Cuarón, cujo Roma pode ser um marco na história.

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A Favorita

“A competição nunca foi tão feroz porque parece haver uma luta pelo futuro de Hollywood, da indústria do cinema e dos próprios Óscares – não só para salvar a emissão da queda de audiências a pique, mas também para o Netflix ter um lugar à mesa”, contextualizou Sasha Stone, analista dos Óscares, no New York Times.

O ano Netflix?

Muitos dos últimos tropeços da Academia decorrem do stress causado pelo negócio da transmissão televisiva da cerimónia. Com a ABC, que detém o exclusivo até 2028 (em Portugal, a cerimónia é transmitida pela Fox), a pressionar para que o espectáculo seja mais curto e mais célerea Academia viu-se obrigada a tentar encurtar uma cerimónia que terá deixado de fixar os espectadores ao ecrã e cada vez mais os perde para a cama. É um negócio crucial para ambas as partes: representa mais de 80% das receitas anuais da Academia (cerca de 143 milhões de euros) e dá à ABC a publicidade mais cara de todo o ano, logo a seguir à que está indexada à transmissão do Super Bowl (em 2018, 30 segundos custavam 2,3 milhões; este ano, segundo o site Business Insider, custam 2,6 milhões).

“É uma pena que haja tanta tensão à volta de espremer até ao último centavo o que a transmissão pode render na televisão, impedindo a cerimónia de ser simplesmente a noite de prestígio que era”, lamenta Tom Nunan. “Os Óscares nunca foram sinónimo de ‘popular’, sempre foram sinónimo do que há de melhor”, acrescenta o produtor, que recebeu o seu Óscar em 2006, quando o Netflix ainda tinha como principal actividade o aluguer de DVD – só um ano depois se lançaria no streaming, e chegaria mais tarde ainda à produção. 2019 é um ano decisivo para a empresa de Ted Sarandos: finalmente disputa o Óscar mais importante. 

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Vice

“O Netflix tem agora como prioridade ganhar Óscares, que poderá apresentar como atributos da marca”, diz Anne Thompson, crítica e editora do site IndieWire. “O Ted [Sarandos] está a fazer no cinema o que fez com a televisão e Hollywood está com medo.” A nova televisão quer conquistar o cinema e fazer dele o seu novo estúdio. “Na sua busca por filmes e cineastas de prestígio, o Netflix teve de se voltar para o espaço de sala que muitas vezes denegriu”, atirou, na Variety, John Fithian, presidente da National Association of Theater Owners, que representa os exibidores americanos. Daí os milhões que o serviço gastou para promover Roma, o filme com que espera chegar mais longe do que a Amazon chegou em 2016, quando pôs Manchester by the Sea na corrida para Melhor Filme.

Mas se há dois anos a sua concorrente jogou pelas regras do mercado tradicional, estreando o filme em exclusivo nos cinemas antes de o disponibilizar no seu serviço de streaming, com Roma, um filme a preto e branco em espanhol e dialecto mexicano que soma dez nomeações, o Netflix impôs as suas regras ao mundo, torneando as políticas locais de divulgação dos números de espectadores em sala para poder manter o seu habitual sigilo comercial. Em Portugal, essa imposição criou uma excepção inédita: com o aval do Instituto do Cinema e do Audiovisual, os resultados de bilheteira de Roma só serão "oportunamente" revelados.

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Green Book

Mesmo tendo ficado fora das grandes cadeias nos EUA, em Espanha ou em Portugal – por pressão dos grandes estúdios ou por finca-pé dos exibidores, que lutam para manter a sua janela de apresentação exclusiva de pelo menos três meses –, o primeiro filme Netflix a chegar primeiro ao cinema do que à televisão estreou-se em 1100 salas de 41 países. E corteja agora, como já o fez com venerandos festivais de cinema –​ Roma foi rejeitado por Cannes mas teve o Leão de Ouro pelo Festival de Veneza –, uma das mais antigas instituições do cinema, ainda que ela esteja em crise. Para Tom Nunan, não é de todo uma atitude paradoxal: “[Os Óscares] são literalmente o maior ‘acontecimento cultural’ do ano”, defende. “Faz todo o sentido que os gigantes do streaming, como o Netflix ou a Amazon, façam de tudo para obter atenção para os filmes que ajudaram a fazer e a mostrar. É um esforço para se legitimarem perante os artistas em Hollywood como players viáveis no ‘reduto do cinema de autor’, e também perante os consumidores que possam estar cépticos quanto à capacidade dos serviços de streaming para produzirem conteúdos comparáveis aos concorrentes aos Óscares financiados pelos estúdios.”

Em crise, em transição ou em bicos de pés à beira de um novo sistema de produção de cinema, os Óscares ainda são um farol para a indústria. “Se um filme maioritariamente distribuído online ganhar, a discussão em Hollywood sobre o que é cinema acaba”, postulou Brook Barnes no New York Times. O horizonte da paisagem cinematográfica passará oficialmente a incluir tanto as salas de cinema como as salas caseiras, o que, assinala o perito, dará ainda mais força ao Netflix (e às outras empresas do ramo) na contratação de grandes autores – já tem na calha Martin Scorsese, já filmou com os irmãos Coen e com Steven Soderbergh.

Super-Óscares

No cinema os nomes são marcas e esta noite, com a desistência de Kevin Hart, os Óscares não terão, como era seu hábito, apenas um rosto. Há teorias (esperanças?) de que à última da hora apareça um anfitrião surpresa, apresentadores repetentes, exemplos do ritual Óscar como Whoopi Goldberg ou Billy Cristal,  que apresentou a gala em 1998, ano em que um filme (Titanic) bateu recordes (11 estatuetas) e a transmissão televisiva da cerimónia também (57 milhões de espectadores só nos EUA).

Será a primeira vez em 30 anos (e a sexta no total das suas 91 edições) que os Óscares não têm anfitrião. “Quem é que vai fazer o monólogo de abertura? Quem vai fazer os gags sobre o shutdown de Donald Trump? Sobre o 'Brexit'? Sobre Putin? Sobre a bizarra aparição de Kevin Spacey como Frank Underwood? Ou os gags sobre Kevin Hart não fazer os gags?”, pergunta o crítico do Guardian Peter Bradshaw.

Entre os apresentadores já confirmados para esta noite estão Daniel Craig, Brie Larson, Chadwick Boseman, Samuel L. Jackson ou Jason Momoa, Ou seja James Bond, Capitão Marvel, Black Panther, Mr. Glass e Aquaman. Heróis chamados a salvar a noite, a que se juntarão os Vingadores. Esta temporada de Óscares espelha não só o dilema entre os cinemas e o sofá, mas a longa discussão sobre diferentes tipos de cinema e diferentes tipos de públicos.

Palavra a dois realizadores, um real, outro ficcional. Cecil B. Demente, ou Stephen Dorff, o actor que o interpretou, e que lamenta a escassez de filmes sem efeitos especiais: “Hoje há tanto de tudo – bons filmes, maus filmes, alguns bons filmes, sobretudo maus filmes.” O seu campo de trabalho, mesmo já tendo filmado com Sofia Coppola ou John Waters, encolheu. “O cinema está em queda, à excepção dos poucos que chegam à altura dos Óscares. Adoro o Alfonso Cuarón e alguns dos realizadores no activo, mas não há assim tantos”, dizia há dias ao PÚBLICO.

O próprio Cuarón, que se adivinha um dos rostos desta noite, avisou em Janeiro que “a experiência cinematográfica se tornou muito gentrificada”. E lembrou que se o Netflix e os seus concorrentes ocuparam em parte o espaço da produção de cinema independente ou de médio orçamento é porque, ao contrário de outros sectores da indústria, "não têm medo de fazer estes filmes.”

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