Rapsódia Hollywoodiana

Ignorar o “valor facial” das mensagens políticas seria, ingenuamente, pressupor que os Óscares têm a ver com cinema. O que, aliás, pressuporia, ainda mais ingenuamente, que o cinema ainda tem a ver com cinema.

Houve um momento em que se pensou que Bohemian Rhapsody poderia vir a ganhar o Óscar de melhor filme, dada a quantidade de prémios que ganhou. E com os quatro Óscares com que foi, um tanto misteriosamente, agraciado (Montagem de Som, Mistura de Som, Montagem e Melhor Actor), acabou a noite como o mais premiado de todos.

Não ganhou o principal — que até colocaria um problema interessante à Academia, dado ter sido em grande parte dirigido pelo entretanto proscrito Bryan Singer, capaz de lembrar o tempo em que Dalton Trumbo, na lista negra do senador McCarthy, ganhou um Óscar sob pseudónimo – mas instaurou o tom da noite: foi tempo de rapsódia. Não especialmente boémia – a lista de nomeados não incluía nada de excessivo, só filmes bem-comportados – mas certamente à moda de Hollywood.

À moda de uma Hollywood que pareceu empenhada em tocar todos os géneros, todas as teclas, não deixar nenhuma possibilidade fora da sua rapsódia. Houve prémios para (quase) tudo, como se confirma pelo facto – que não será inédito, mas também não acontece sempre – de todos os oito nomeados para o Óscar de melhor filme terem levado alguma coisa para casa.

Assim validadas várias propostas de cinema apesar de tudo razoavelmente distintas uma das outras, a mensagem de Hollywood para o futuro do cinema (pelo menos até ao ano que vem) é uma mensagem de diversidade – até na forma de distribuir e exibir: um dos “vencedores” da noite foi a Netflix, que puxou pela carroça de Roma com força suficiente para a fazer chegar a três Óscares significativos (Melhor Filme em Língua Estrangeira, Melhor Fotografia, Melhor Realizador).

Mas também não se confirmou a possibilidade de Hollywood, perante a convocatória de tantos não-americanos e de tantas produções geograficamente híbridas (o polaco Pawlikowski foi ignorado, o filme irlando-britânico-americano do grego Lanthimos foi proporcionalmente o grande “derrotado” da noite, com um Óscar em dez nomeações), se dissolver enquanto centro, ainda que cada vez mais simbólico, da mais popular produção cinematográfica global, para se converter em centro, um pouco mais do que só simbólico, de legitimação da produção cinematográfica global. Tudo isso permanece em aberto (pelo menos até ao ano que vem).

E, depois, claro que é a política. E que a política, nas suas declinações dominantes no panorama actual (migrações, questões de género ou orientação sexual, tensões raciais), estaria forçosamente presente a partir do momento em que qualquer dos oito nomeados a melhor filme lidava (ou permitia que se lidasse) com um ou mais do que um destes assuntos.

É “político” que do México – país de que o actual Presidente americano se quer isolar e de onde vêm, segundo ele, “violadores” e “bad hombres” – venha também pelo segundo ano consecutivo o vencedor do prémio de melhor realizador (Cuarón depois de Del Toro, e não esquecendo as vezes que Iñarritu, este ano felizmente inactivo, já ganhou o mesmo prémio); é “político” que Black Panther, com três Óscares, se tenha tornado o mais consagrado filme de super-heróis de sempre, numa mensagem límpida e, diga-se, bastante louvável – menos filmes de super-heróis brancos para que os brancos se sintam menos super-heróis; é “político” que um entertainer com o apelo popular e o perfil de Freddie Mercury (gay e imigrante, como lembrou Rami Malek no seu discurso de aceitação, lembrando também que ele próprio é americano de primeira geração, filho de imigrantes egípcios) tenha sido uma espécie de protagonista de uma cerimónia que começou com uma actuação da banda de que fez parte (como dizia alguém durante a noite: “Não é o filme que estão a premiar, é a recordação do Freddie Mercury”); é “político” que o Melhor Filme, pesem embora as possibilidades mais belicosas e “activistas” no tratamento das questões raciais que estavam à disposição (como o Black Panther, precisamente, ou o Blackkklansman de Spike Lee, eterno injustiçado que teve de se contentar com a consolação do Óscar de Melhor Argumento Adaptado), tenha caído num filme como Green Book, que convoca os demónios racistas da América para os exorcizar num abraço de reconhecimento fraternal entre um homem negro e um homem branco.

Ignorar o “valor facial” destas mensagens políticas seria, ingenuamente, pressupor que os Óscares têm a ver com cinema. O que, aliás, pressuporia, ainda mais ingenuamente, que o cinema ainda tem a ver com cinema.

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