Estamos a tirar o valor às palavras

Quando se banalizam palavras como “fascismo” está-se a esgotar o arsenal de recursos para o travar.

Quem lesse o título do manifesto subscrito por 35 organizações e 271 personalidades que ontem o PÚBLICO divulgou teria todas as razões do mundo para temer a iminência de um golpe de estado ou os primeiros passos de uma revolução. “O racismo e o fascismo não passarão!”, lia-se no título do manifesto, com ponto de exclamação e tudo para reafirmar a gravidade o sentido de urgência da mensagem.

Apesar do tom dramático da mensagem, a agenda noticiosa não deu conta de qualquer manobra militar, de qualquer tentativa de assalto de putschistas ou de um vago sinal de ataque ao sistema partidário, à Constituição ou aos pilares da Justiça. O que dominou a actualidade deste país cada vez mais propenso à infantilização e ao dramatismo sem correspondência foi um telefonema em directo do chefe de Estado para uma conhecida apresentadora de televisão.

A preocupação dos signatários do manifesto com o incidente que os mobilizou não é só compreensível como legítima. Tolerar que uma estação de televisão de sinal aberto entreviste um homem com o currículo criminal de Mário Machado, um homem que jamais pediu perdão às suas vítimas ou deu qualquer sinal de reabilitação para uma vida social ou política decente, é lamentável, como já aqui escrevemos.

Mas uma coisa é criticar uma decisão irreflectida ou até negligente e irresponsável, como já o fizemos, outra é ver no processo mais uma porta aberta para a vitória do fascismo. Quanto mais não seja porque essa atitude dá a Mário Machado e à dúzia e meia de extremistas que o acompanham um poder que está longe de ser real.

Quando se banalizam palavras como “fascismo” está-se a esgotar o arsenal de recursos para o travar. E em Portugal nota-se cada vez mais que se rotula com a chancela do fascista ou do comunista (no sentido estalinista do termo, com purgas e assassinatos de dissidentes) a quem simplesmente pensa de forma diferente - Passos Coelho foi alvo do insulto e António Costa não lhe escapa.

Mário Machado revela tiques fascistas, é certo, mas faz parte de uma minoria sem qualquer poder efectivo ou representatividade política. Dá-lo como arauto de um movimento de fundo que ameaça as instituições deprecia o perigo do fascismo e torna-o corriqueiro. Se para nossa desgraça um dia o fascismo puro e duro estiver mesmo ao virar da esquina, que palavra vamos usar para o denunciar e combater?

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