“Muitos deputados — não sou só eu — sentem-se um pouco desincentivados”

Paulo Trigo Pereira decidiu deixar a bancada do PS e passar a deputado não-inscrito. Foi este o custo da sua "divergência" pelo menos 147 vezes em relação ao PS e a insistência em ser coerente. A gota de água foi não ser escalado para intervir no Programa de Estabilidade e no Orçamento quando a sua especialidade é finanças públicas.

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Paulo Trigo Pereira chegou ao Parlamento como deputado independente eleito pelo PS no distrito de Setúbal, espera passa à condição de deputado não-inscrito no início do ano. Daniel Rocha

Fez parte da equipa que preparou o programa económico com que António Costa se apresentou às eleições de 2015, integrou as listas do PS como independente e agora bate com a porta. Admite que as críticas ao Governo terão levado Carlos César a não o deixar falar no Programa de Estabilidade, nas Finanças Locais e Orçamento. Critica-o por não estimular o trabalho dos deputados e quer que a sua saída seja um “aviso” ao PS. Tem vários temas-bandeira que o PS não lhe permite içar.

O que esteve na base da decisão de sair do grupo parlamentar do PS e passar a deputado não inscrito?
Foi tornar mais ajustada a realidade ao meu estatuto formal.

O que quer dizer? Já não tinha estatuto de deputado do PS?
Isso tem que ser explicado com o enquadramento da minha actividade parlamentar. Sou membro efectivo apenas de uma comissão - sou vice-presidente da COFMA -, e depois membro da comissão eventual para a Transparência e suplente dos Assuntos Europeus. Com a excepção do Orçamento do Estado e mesmo aí com muitas limitações, o grupo dos deputados COFMA não funciona há bastante tempo.

Não funciona porquê?
A AR funciona de forma descentralizada em comissões e os partidos também. Um bom exemplo de funcionamento no PS é a comissão de Educação, presidida pelo Alexandre Quintanilha e o coordenador da área é Porfírio Silva. Funcionam realmente bem em bancada, há ali uma coesão e uma reflexão que surge de um debate. Há comissões que funcionam bem.

Acontece que, logo por azar, fui parar a uma comissão em que no início estava Eurico Brilhante Dias, João Galamba, João Paulo Correia, e ainda funcionava. Mas daí para cá, sinceramente deixou de existir.

É esse o único problema?
Esta é uma dimensão do problema. Quem decide sobre as intervenções é a direcção da bancada. Parece-me um pouco estranho que um vice-presidente da COFMA nos dois momentos mais importantes das finanças públicas - o orçamento do Estado e o Programa de Estabilidade - não intervenha em plenário. Mas foi o que aconteceu em 2018.

Sendo vice-presidente, foi posto de lado?
Para além de ser vice-presidente, aquela é a minha formação - finanças públicas. Nunca pedi para falar em plenário mas também não me foi sinalizado. A única explicação puramente especulativa é que sou um deputado desalinhado. Acho que isto é um sinal de fraqueza do grupo parlamentar. Eu sei muito bem o que é importante dizer do ponto de vista do apoio ao Governo mas também sei que é interessante e útil haver aqui e acolá uma nota ligeiramente crítica para ajudar o Governo a orientar-se.

Por exemplo?
Há uma temática no âmbito das finanças públicas que o país todo devia estar a discutir e que ninguém tem falado: os objectivos para o saldo orçamental no curto e médio prazo. Algo que já está a ser discutido na União Europeia. A Comissão Europeia definiu para Portugal o objectivo de excedente orçamental que é revisto a cada três anos e vai ser revisto no início de 2019. Disso vai depender a diferença entre +0,25% e -0,5%, que são 0,75% de margem [do défice]. Estamos a falar em ter mais ou menos 1500 milhões de euros por ano nas políticas públicas. Eu percebo que Mário Centeno, que agora lidera o Eurogrupo, não queira pôr isso em cima da mesa, mas será que nós, deputados, não devemos suscitar esta questão? A minha opinião é sim. 

Essa seria a sua intervenção sobre o Programa de Estabilidade?
Exactamente. Aliás, eu fiz depois isso na COFMA, na audição ao Conselho de Finanças Públicas. Isto é um exemplo de como eu poderia ter sido útil ao grupo parlamentar se o PS quisesse. Mas a direcção acha que não é relevante eu intervir em plenário; em sede de OE rejeita propostas minhas sem justificação e depois estou integrado num grupo que não funciona. Ser deputado não inscrito, no fundo, é, paradoxalmente, inscrever a realidade parcial.

Não intervir no OE2019 foi a gota de água?
Não é uma questão de intervir, é a minha intervenção ser ou não considerada relevante e uma questão de respeito. Houve uma fase bastante complicada antes, na discussão sobre a descentralização, em particular sobre a Lei das Finanças Locais (LFL). Tivemos muito pouco tempo para a apreciar, fiz quase directa para fazer o relatório mas não produziu efeitos relevantes. Esse foi o primeiro momento em que pensei: 'Afinal qual é o nosso papel de deputados nas grandes reformas do país?' Acho que a AR devia ter um papel muito mais preponderante, mas isso exigia que os GP funcionassem bem. Mas a bancada do PSD funciona muito pior.

Carlos César ouve os deputados?
Eu não posso falar pelos outros deputados. Da minha experiência, há dois meses que aguardava para falar com Carlos César. Tivemos uma conversa há dois meses sobre o descontentamento e daí para cá tentei falar e só consegui ontem [quinta-feira], para explicar a decisão. 

Compreendeu as razões?
Não falo sobre conversas privadas. Ouviu atentamente, argumentou e tentou convencer-me a não sair, mas...

Veio tarde?
Foi tarde, efectivamente.

Não receia que a sua saída possa fragilizar o PS em votações?
Não. Porque eu vou cumprir escrupulosamente o compromisso ético que assinei quando me candidatei nas listas do PS: a disciplina de voto em questões como o OE, moções de censura e de confiança, questões programáticas do Governo. Desejo manter um bom relacionamento com o GP do PS e os deputados, tenho uma óptima relação com todos, mesmo com o Carlos César. É difícil de falar com ele, mas tenho relação muito cordata com ele. Tudo depende da forma como nos articularmos.

Porquê agora?
Apesar do desconforto que manifestei explicitamente, eu sou um claro apoiante deste Governo. Sabia que este seria um OE difícil, ponderei a saída antes, mas apesar de não ter falado, trabalhei mais para este OE do que para qualquer outro. E decidi que o iria aprovar com e no GP do PS. Agora não há condições para continuar.

Não era mais fácil sair da AR, já que tem uma carreira académica?
Violaria o meu compromisso ético, que diz que nós cumprimos o mandato até ao fim - eu prezo muito a ética. Aderir ao GP foi feito na primeira reunião por mim e pela Helena Roseta, foi uma opção, porque somos independentes. O que estou a fazer é reverter essa decisão e dizer 'meus amigos, gosto muito de vocês, mas tenho um ano pela frente, é muito tempo e os contribuintes andam a pagar o meu salário para eu trabalhar'.

Se fosse uma relação amorosa a justificação seria mais 'não és tu, sou eu' ou 'não sou eu, és tu'?
Quando uma relação acaba, há sempre coisas dos dois lados, sempre. Ou seja, é eu e tu. Eu porque não abdiquei daquilo que acho que deve ser um Parlamento forte, dinâmico. Eu aceito que também posso não ser uma pessoa muito fácil, compreendo que os partidos não estão habituados a lidar com pessoas independentes.

Isso leva-nos às 147 vezes em que votou de forma diferente da sua bancada. Isso teve consequências negativas na sua relação com a direcção do GP?
Sim, acho que sim. Quando divirjo, muitas vezes apresento declarações de voto. Não divirjo por divergir. Se ando há 30 anos a ensinar determinadas coisas, não posso chegar e votar a favor de uma coisa em que sou contra. As divergências são fundamentadas. Compreendo que a direcção da bancada sinta algum desconforto e que chegou a um ponto que eu achei ridículo e ineficaz: nomear-me para o grupo de trabalho da Lei das Finanças Locais e depois desnomear-me por causa da minha votação. Foi ineficaz porque qualquer deputado pode ir a qualquer comissão e fui sempre e intervim.

O Governo tem uma atitude paternalista em relação ao GP do PS?
Tem, e o exemplo é a Lei das Finanças Locais. Mas o problema central para mim não é a relação do Governo com o GP; é o funcionamento do GP que devia puxar pelos deputados, estimulá-los a darem o melhor que têm. Um GP é uma organização como qualquer outra: tem um líder, uma liderança intermédia e depois tem os deputados e como qualquer organização é preciso motivar os trabalhadores. E motivá-los é envolvê-los na reflexão sobre os projectos de lei, na elaboração de pareceres, nas intervenções do plenário. Muitos deputados - e não sou só eu - sentem-se um pouco desincentivados. 

Carlos César não estimula a participação dos deputados?
(longo silêncio) Isto é uma organização piramidal. Não é só Carlos César, a linha abaixo são os vice-presidentes e os coordenadores; estas são as pessoas importantes em cada GP. Volto à Educação: o coordenador envolve os deputados, sentem que a sua voz é ouvida. Na COFMA isso não acontece. 

Diz que esta saída ajuda o PS. Como?
Eu acho que estou a ajudar muito o PS se conseguirem perceber este sinal. Aprendi muito e valorizo muito o PS, contactei com as bases nomeadamente em Setúbal e tem gente excelente, que admiro muito e que dá tudo o que tem à freguesia, ao município. Portanto, o nível das bases funciona bem no PS, ao nível da super-estrutura é que funciona muito mal.

Porquê?
Isso daria um livro. Os partidos se não tiverem think tanks das várias áreas a alimentar as suas propostas políticas, não têm eficácia nenhuma na acção governativa. Isso existe no PS e no PSD mas não têm muita substância. Isto é super-estrutura do partido. O próximo ano vai ser difícil e o PS - e isto já é o deputado não-inscrito a dar um conselho amigável - tem que se preparar para as legislativas. Em Dezembro de 2014, o grupo de 12 economistas estava a trabalhar semanalmente durante quatro meses para apresentar o cenário económico que apresentou em Abril de 2015. Isso foi essencial para o sucesso desta governação. Hoje, o PS anda um pouco embalado pelas sondagens. E não se ganham eleições com sondagens, ganham-se com votos.

Já há muito socialista iludido com a maioria absoluta?
Julgo que não. Esta foi uma boa governação, com bons resultados económicos e sociais, mas essa preparação ajudou muitíssimo. Eu só tenho uma pequena parcela dos créditos, mas se não fosse o Excel que permitia e permite que quando Bloco, PCP e PEV fazem reivindicações que não são sustentáveis financeiramente, nós podemos dizer: 'Meus amigos, isto custa 500 milhões. O que querem fazer?’ Se não fosse essa base de conversa, esta legislatura não teria chegado ao fim.

Foi uma má experiência, esta de deputado no PS?
Todas as experiências na vida são boas.

E repetia-a?
(longo silêncio) Neste enquadramento penso que não.

Olhemos para o futuro. Como é a melhor forma de ajudar o PS como não-inscrito?
Esta minha saída é um sinal de alerta porque há coisas que não vão bem e não é com o deputado A ou B. Não vão bem e vale a pena reflectir sobre elas. Espero que esta decisão se projecte no futuro. Há coisas que ainda quero fazer no Parlamento - e esta é uma segunda razão para sair.

Por ter propostas que o PS nunca aceitaria?
Sim. Por exemplo, o debate político urgente sobre a reforma do sistema eleitoral, que estava no programa eleitoral do PS mas caiu com os acordos parlamentares. Agora há uma petição sobre isso, trabalhada entre a Associação por uma Democracia de Qualidade e a SEDES. Acho fundamental um debate com dignidade para os partidos a integrarem nos programas eleitorais. Sem uma reforma do sistema eleitoral não há bons grupos parlamentares e não há renovação da democracia.

Além dessa, quais serão as suas outras bandeiras?
A transparência. Espero que o PAR me permita ficar na comissão porque é um tema em que já trabalhei e em que posso assumir as minhas posições. Outras prioridades são as áreas dos cargos dirigentes e CReSAP, da formação dos trabalhadores da administração pública - porque uma verdadeira reforma do Estado passa pela reforma dos cargos dirigentes e pela capacitação a sério dos trabalhadores -, a descentralização e o reforço das assembleias municipais.

Em termos administrativos, quando é que muda para deputado não-inscrito?
O processo começou com a carta ao PAR, indicando que desejo tornar-me deputado não-inscrito e manifestando as minhas preferências sobre as comissões parlamentares. Demito-me de vice-presidente da COFMA e agora o PAR, ouvida a conferência de líderes, propõe as comissões a que pertencerei, que espero sejam as mesmas de agora.

Portanto, ano novo, vida nova?
É isso mesmo. Pediram-me para adiar a decisão e ela foi muito atrasada até ao limite. E a razão por que eu não a podia adiar é mesmo por isso: ano novo, vida nova. E gostava que até ao Natal tudo esteja organizado.

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