A polémica sobre as reformas antecipadas

Esta matéria não é sobre betão. É sobre a vida de pessoas e a sua expectativa em contextos bem concretos.

1. No artigo 90.º da proposta de lei do Orçamento do Estado (OE) está prevista a criação de um novo regime de flexibilização da idade de acesso à pensão, ou seja, reforma antecipada. Nele é consagrada a eliminação do chamado factor de sustentabilidade para os pensionistas que, aos 60 anos, tenham, pelo menos, 40 anos de registo de remunerações relevantes para cálculo da pensão (vulgo, descontos).

Aparentemente houve uma dissonância entre o entendimento vertido na proposta de lei e o que o PCP e o BE, na ânsia de serem os anunciadores de “boas notícias”, terão negociado com o Governo. Depois, logo surgiram as reacções de quase todos os partidos criticando fortemente a proposta, por vezes com alguma atrevida ignorância. Até o partido do Governo fez uma leitura mais popular, que não coincidia com o que está escrito, pela voz do líder parlamentar que mais parecia estar a leste da questão.

Num quadro de sustentabilidade de longo prazo do sistema público de pensões, as reformas antecipadas só deverão ser consideradas se, no seu percurso integral, tiverem uma expressão financeiramente neutra. Ou seja, se o factor de redução do valor da pensão estatutária inicial for o actuarialmente adequado para compensar o acréscimo de tempo de pagamento da pensão antes da idade normal de acesso à pensão de velhice. Partindo do princípio que a actual taxa de redução (0,5% por cada mês de antecipação) é tecnicamente correcta e ajustada à evolução da esperança de vida (crescente) a partir da idade do início de recebimento da pensão, poder-se-á concluir que um regime assim concebido garante a neutralidade financeira e não gera pressão adicional sobre a sustentabilidade da Segurança Social. Isto é, paga-se durante mais tempo uma pensão, mas o seu valor, inferior ao da pensão normal, compensará aquele factor.

Importa haver plena consciência do encargo das reformas antecipadas para o sistema caso não houvesse uma redução que as torne actuarialmente neutrais, ou, de outro modo, não seria justo que quem só recebe a pensão na idade definida por lei tivesse de pagar o esforço adicional resultante de um desequilíbrio provocado pelas pensões antecipadas.

A questão financeira alargada no tempo é, porém, diferente da que pode surgir no plano orçamental e num horizonte mais curto. Por outras palavras, a antecipação de reformas, ainda que tendencialmente neutra, pode, no curto prazo, significar ceteris paribus um aumento no total de pensões pagas pelo sistema e uma diminuição de contribuições arrecadadas. Talvez esteja aqui uma das preocupações implícitas na proposta do OE.

2. O regime actual ainda não revogado (mas suspenso desde 2014) previa o acesso à pensão antecipada com a verificação cumulativa de duas condições: 55 anos de idade e 30 anos de contribuições nessa mesma idade. Na agora proposta do Governo, as duas condições (repito, cumulativas) passarão de 55 para 60 anos quanto à idade e de 30 para 40 anos quanto ao registo de remunerações. Verdade seja dita que no OE apenas se fala da não aplicação do factor de sustentabilidade, com omissão quanto a outras conjugações de idade e descontos para acesso a pensão antecipada.

Entretanto, o ministro da Segurança Social veio anunciar um período de transição – só para efeitos de acesso ao regime de antecipação –, o que é razoável. Esgotado tal período, o novo regime poderá vir a não permitir a antecipação da pensão entre os 60 anos e os 66 anos e quatro meses (a actual idade normal de reforma) sempre que, aos 60 anos, não haja os tais 40 anos de carreira contributiva. Por exemplo, uma pessoa com 65 anos de idade e 44 de desconto teria de esperar até à idade normal de reforma, pois aos 60 anos só perfazia 39 de descontos.

Seja qual for a situação de transição que vier a ser consagrada, existirá sempre um forte desincentivo para a antecipação de reforma, em virtude de a pensão inicial ficar bastante reduzida. Na situação prevista no OE (60 anos de idade e 40 anos de descontos, e sem factor de sustentabilidade), a pensão sofrerá um corte de 76 meses x 0,5% = 38%. Mas, por exemplo, aos 61 anos e com os mesmos 40 anos de descontos o corte seria de 64 meses x 0,5% = 35%, a que acresceria o factor de sustentabilidade de 14,5%, ou seja, uma redução de quase 50%. 

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O sistema de reformas antecipadas opcional tenderá, pois, a ser muito residual. No quadro, pode ver-se a evolução acumulada das pensões antecipadas (que são cerca de 7% das pensões de velhice). Na minha opinião, a reforma antecipada por opção própria faz cada vez menos sentido, tendo em conta o fosso crescente entre a saída prematura do mercado de trabalho e a maior longevidade do pensionista.

Em suma, clareza precisa-se: na intenção do legislador, no anúncio da medida, na definição da transição de regimes, no equilíbrio entre o poder legislativo e a concertação social que afaste tacticismos de conveniência, na posição algo oportunista dos partidos.

É que esta matéria não é sobre betão. É sobre a vida de pessoas e a sua expectativa em contextos bem concretos.

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