A cozinha verdadeiramente genial da Noélia é todos os dias aperfeiçoada por ela

A sua cozinha é única. É a cozinha de uma só pessoa, de uma só cabeça, de um só par de mãos. Podemos dar graças a Deus por ter nascido e ficado em Portugal. Mas eu prefiro dar graças à Noélia.

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Maria João Esteves Cardoso

Num tempo de menos injustiça para as mulheres, continua a ser gritante a quantidade de chefs que são homens: são quase todos.

É inteiramente artificial, esse domínio. Pergunte-se a esses chefs se são os homens ou as mulheres que cozinham melhor e todos eles, se forem honestos, responderão que são as mulheres. Ou que não interessa se são homens ou mulheres.

De qualquer maneira, quantos desses chefs, sejam portugueses ou de outra nacionalidade, se dizem inspirados pela cozinha do avô ou do pai?

Os chefs-homens também têm a mania de indicar os nomes dos restaurantes de outros chefs-homens onde trabalharam para obter o valor acrescido que daí advém.

É ridículo. E é por isso que o exemplo da Noélia é tão refrescante.

Eis uma mulher que não aprendeu com ninguém e aprendeu com toda a gente. Ela não tem vícios nem tiques de escola nenhuma. Inventou-se a si mesma. Quando vamos a Cabanas comer na Noélia vamos deliciarmo-nos com a cozinha de uma pessoa que é cem por cento ela própria. Essa pessoa é uma cozinheira genial porque tem génio: exprime-se através do que cozinha e, abraçando a crueza dos mariscos e dos peixes, cada vez cozinha menos e combina mais.

Há mais de um ano que não provava a cozinha da Noélia. Como ela é uma criadora constante, a única maneira de acompanhá-la é ir lá todos os dias almoçar e jantar, folgando só à quarta-feira. Eu sei porque já passei assim dois meses inteiros em dois anos seguidos.

A Noélia acorda todos os dias com uma ideia diferente. Quando recebe os ingredientes tem uma segunda ou terceira epifania. Ela desenvolve as ideias de uma forma metódica e lenta, aproveitando sempre o que aprendeu anteriormente. Só os espíritos medíocres se alegram em começar do zero. A Noélia parte do tudo que já sabe.

Entre os muitos pratos novos, talvez o mais sensacional seja o tártaro de carabineiro. O sabor da carne crua do carabineiro é modulado através da frescura da salada complexa que o rodeia.

Estão lá as revelações dos tártaros de atum e de ostra do passado, mas a forma presente é a mais perfeita. A Noélia está sempre a melhorar-se. Cada criação é um avanço, fazendo com que os pratos do passado pareçam incompletos. É um sacrifício terrível mas sem ele não há genuína inovação.

Essas inovações estendem-se a todos os elementos dum prato. Vejam-se, por exemplo, as torradas, feitas a partir de um primoroso pão cozido em Corte António Martins.

Este ano as torradas são fofinhas e barradas com manteiga, na tradição galega de acompanhar mariscos. Por exemplo, com umas amêijoas à Bulhão Pato absolutamente perfeitas (por causa das amêijoas, por causa do molho) as torradas brilham de tão necessárias.

Outro triunfo deste ano foram as sardinhas albardadas com xerém de tomate. O xerém é espectacularmente guloso, talvez porque nos falte milho (e canja) na alimentação. Parece que estamos a regressar a uma infância perdida.

Os filetes de sardinha do Algarve são sumptuosamente fritos em almofadinhas gordas de fazer perder a cabeça. Porque é que este prato não faz parte obrigatória do dia-a-dia do nosso Verão?

O ceviche de dourada faz salivar a boca de tão deliciosamente adstringente. É um ceviche particular da Noélia, aperfeiçoado infinitamente, calibrado pela lima que ela sabe desdobrar como ninguém. Tem framboesas, abacate e coentros mas isso nada nos diz. É a combinação que levanta aquilo tudo e torna o ceviche muito mais que a soma de todas as partes.

Ao aperfeiçoar-se, a Noélia está a aproximar-se do receituário tradicional do Algarve, cada vez mais raro e abandonado. Como não tem complexos nem inibições, a Noélia usa influências japonesas, andaluzes e escandinavas para fixar aquilo que lhe trazem a memória e a imaginação dela. É uma cozinha fresca e cheia de umami, atrevida e inteligente, sensual e leve.

É, sobretudo, única. É a cozinha de uma só pessoa, de uma só cabeça, de um só par de mãos. É a cozinha da Noélia. Podemos dar graças a Deus por ter nascido e ficado em Portugal. Mas eu prefiro dar graças à Noélia.

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