Eles ajudam a construir memórias para tornar o futuro possível na Síria

O padre Fouad não estava preparado, como nenhum sírio. Agora dirige o Serviço Jesuíta aos Refugiados no seu país e não desiste da paz. O padre Gonçalo quis levar esperança. Muita gente quis ouvi-los e saber como ajudar.

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Os padres Fouad e Gonçalo (este com uma T-shirt feita sa Síria) no fim da conferência Miguel Manso

“Não esquecemos a Síria” era o nome da conferência que se queria mais conversa do que soma de monólogos. A passagem por Lisboa do director do Serviço Jesuíta aos Refugiados (JRS, na sigla inglesa) na Síria, o padre Fouad Nakhaleh, e do padre Gonçalo Castro Fonseca, jesuíta português em missão em Damasco, foi o pretexto. As dezenas de cadeiras da sala escolhida pelo JRS Portugal, no Centro Universitário Padre António Vieira, não foram suficientes – houve gente a ouvir do jardim, muitos jovens sentados no chão. Uma assistência atenta, com dúvidas e preocupações.

Na mesa, com os padres, estavam o director do JRS Portugal, André Costa Jorge, e Ghalia Taki, síria a viver em Lisboa e desde 2015 a trabalhar com o JRS como tradutora no apoio ao acolhimento dos refugiados árabes. Ninguém passou muito tempo sentado e o microfone saltou de mão em mão.

A ideia era falar da Síria hoje, do serviço que o JRS presta aos sírios e do mais que queria fazer, mas também das “questões de acolhimento e integração, lembrar que ninguém escolhe ser refugiado” e que quem se vê nesse caminho atravessa um “processo de impacto psicológico”, da necessidade de “se ter em conta a saúde mental” de quem “deixa a vida em suspenso, em farrapos”, antecipara André Jorge.

Abrir ou reabrir um diálogo, chamar a atenção, relembrar que os sírios fogem “de um regime autoritário” e “porque é que temos de acolher”, num momento em que na Europa se baralham palavras como migrações e refugiados, e se insiste em falar de “uma crise europeia”, quando “crise é o que se passa nesses países”, de onde as pessoas saem. Na Europa, defende o responsável português do JRS, o que há é uma “crise de decisão”, para além de países empenhados em afastar daqui quem precisa de cá chegar.

Fala-se de integração esquecendo que “é mais duro para quem chega”, que não há como ser algo instantâneo. E sim, é preciso pensar que um dia podemos ser nós a acordar e a vermo-nos sírios. “Pode ser que um dia sejamos nós a precisar.” Outro ponto de partida para uma conversa que visava também dar pistas a quem quer “envolver-se e não sabe como”. Porque, “apesar do conflito, é possível ajudar a construir a esperança, o futuro, uma palavra que se tornou estranha na Síria, onde existe o hoje e o amanhã talvez”.

Por maiores que sejam as dificuldades, aponta André Jorge, “não podemos nunca desistir da integração”, já que “deste sucesso haverá frutos no futuro”. Para isso, há que perceber que “é preciso coragem de longo curso”. Pelo caminho, é preciso ajudar a criar raízes, saber que quem acolhemos traz “uma memória de perda e destruição”.

“Futuro” e “memórias” foram palavras repetidas por todos os presentes nas conversas com o PÚBLICO e na conferência. Para o trabalho do JRS na Síria, são mesmo palavras-chave. Isto numa fase de transição, com projectos de ajuda de emergência (distribuição de alimentos, cozinhas de campo, centros médicos) essencialmente para deslocados internos a chegarem ao fim e outros, como os centros de Educação e Protecção de Crianças, onde também se organizam encontros de reconciliação, a crescerem.

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Um campo de deslocados internos no Norte da Síria Mohammed Badra/EPA

Pôr crianças a brincar

“Desde o início que trabalhamos para a reconciliação, mesmo sem que isso seja explícito. Servimos toda a gente sem saber de onde vêm ou quem são com um único critério, o da necessidade. E as nossas equipas de voluntários são mistas”, ou seja, podem ter cristãos, muçulmanos sunitas ou xiitas (alauitas, o ramo seguido pelo ditador Bashar al-Assad), árabes ou curdos, descreve o padre Fouad. “É a nossa forma de servir a reconstrução… Só juntos poderemos reconstruir o país”, diz Fouad.

No centro a funcionar em Damasco, actualmente dirigido pelo padre Gonçalo (que terá em breve funções de adjunto do director), há 60 crianças a estudar. “Nenhum dos professores tem formação no ensino”, diz o português. “São engenheiros, arquitectos”, adaptaram-se, como todos. “O objectivo de fundo é sempre promover a paz”, afirma Fouad. “Pensamos que atingimos isso junto das crianças. Elas só conheciam o conflito e nós damos-lhes um espaço onde podem viver em paz e experimentar estar juntas, brincar em conjunto. A esperança é que façam memória, façam memória de paz e de conforto”, descreve. Assim, mesmo chegando a poucas, “podemos contribuir para construir futuro”.

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Em 2013, dois irmãos de 12 e 14 anos defendiam posições num bairro de Alepo Muzaffar Salman/Reuters

Nascido há 38 anos numa pequena cidade a norte da capital, o padre foi apanhado pelos protestos de 2011 e pela brutal resposta do regime a terminar os seus estudos, em Paris. Em 2012, já estava em Damasco. “Era lá que fazia falta, tinha de regressar.” Não estava preparado, claro que não. “Ninguém estava preparado.” Os sírios não sabiam que o inferno ia desabar muitas vezes na sua cabeça por terem ousado manifestar-se contra as injustiças que os rodeavam. “A Síria parece ter sido virada de cabeça para baixo várias vezes”, diz Fouad.

Mais de 6 milhões de sírios fugiram do país nos últimos sete anos. Dentro da Síria, pelo menos 6,6 milhões estão deslocados. O trabalho do JRS, que o padre Fouad dirige desde 2016, não podia ter escapado a esta debandada permanente. Em 2016, o JRS contava com 600 voluntários. O padre esteve fora entre 2014 e 2015: “Quando voltei só conhecia duas pessoas. Neste momento, só sobra uma pessoa do início.”

O JRS nasceu em 2008, inicialmente para servir os refugiados da guerra do Iraque, sem saber que dali a poucos anos teria de responder à tragédia sem fim dos próprios sírios.

Voluntários nunca faltaram. Nem nos piores momentos, durante os combates de 2012 às portas de Damasco; em 2013, quando um centro jesuíta foi destruído num bombardeamento em Alepo. Desde então, todos os centros encerraram várias vezes temporariamente. Em 2014, um padre jesuíta que recusou abandonar Homs foi assassinado (Fouad trouxe uma fotografia de um terço para o recordar).

O outro também sofre

Dependendo das alturas, entre os centros de Damasco, Alepo e Homs, uma das cidades mais fustigadas pela destruição imposta pelo regime, o JRS serviu dezenas de milhares de refeições quentes por dia, prestou cuidados médicos a milhares de pessoas (o centro de saúde de Alepo vai continuar aberto) e distribuiu a partir destas cidades mais de 10 mil cabazes básicos diários.

A aposta faz-se agora nos centros comunitários, como os que já existem, para as crianças, e onde também se promovem encontros entre famílias que estiveram em lados opostos. “Admitir que os outros também sofrem, que não sou eu o único a sofrer, é um passo fundamental para o entendimento do outro”, diz Fouad. Encontros que muitas vezes são refeições e onde se tenta mostrar como é possível resolver diferendos através de mecanismos de paz.

Com muita vontade de chegar a mais pessoas, o JRS Síria está a acabar de construir um prédio na periferia de Damasco, numa “área com muitos deslocados e onde faz muita falta trabalho de reconciliação e promoção de justiça”. Ali poderão estudar 400 crianças em simultâneo e as portas estarão sempre abertas às suas famílias e a quem mais quiser entrar.

“Recebíamos 60 crianças e víamos 200 lá fora a sonhar em estar lá dentro”, diz Fouad. “Pensávamos: ‘Não podemos continuar a olhar para estes refugiados todos os dias.’ Nunca poderemos responder a tudo, lutamos muito com isso”, conta. Mas puderam construir o prédio que agora precisa de ser equipado – o que motivou um pedido especial de ajuda através do JRS Portugal (as contribuições podem fazer-se na conta PT50 0035 0413 00042320130 42).

O que não mudou

Com o seu país tantas vezes “virado de cabeça para baixo” desde 2011, perguntamos ao padre Fouad o que é que há de constante, o que é que nunca mudou num país tão destruído, em que “a confiança e as estruturas sociais se romperam”. Pensa por breves momentos, olha em frente e responde: “A única constante é a hospitalidade dos sírios, isso nunca mudou. Até agora...” Fouad começara a conversa a lembrar “a enorme injustiça” que é os sírios estarem nesta situação depois de terem recebido sempre vagas de refugiados, “gregos, somalis, sudaneses, palestinianos, iraquianos, libaneses…”

A propósito da “hospitalidade” e da existência de constantes, recorda-se de um dia em 2013. “Organizámos uma distribuição para 3000 pessoas e era estilo supermercado, elas entravam e escolhiam o que queriam”, conta. “No dia seguinte, uma senhora voltou com a sua família e trouxe-nos um pequeno bolo. Era mesmo pequeno [e mostra o tamanho formando um círculo com as mãos]. ‘É isto que eu tenho’, disse. Éramos 100 voluntários mas fizemos uma grande festa com este bolo”, diz, emocionado com as suas memórias.

E é assim que o padre Fouad decide juntar mais uma palavra à hospitalidade. “Hospitalidade e dignidade. Os sírios mantiveram a capacidade de expressar o seu ‘obrigado’ com muito pouco.”

O padre acredita num futuro, mas para isso será preciso não esquecer três palavras fundamentais – “justiça, verdade e educação”. Fingir que nada aconteceu não permitirá aos sírios seguirem em frente, ignorar a realidade não vai contribuir para a reconciliação e para a reconstrução interna tão necessárias. A educação é tudo.

Vontade de “levar esperança”

As necessidades são intermináveis e é proibido bloquear perante essa certeza. “Não temos o poder para mudar as circunstâncias mas podemos encontrar uma forma de ajudar as pessoas a mudarem a sua realidade a partir das circunstâncias”, diz Fouad. “O nosso trabalho é mostrar que é possível. É possível educar uma criança, é possível servir com dignidade, é possível pôr as pessoas a falar umas com as outras. O modo como vivemos não é uma fatalidade. É isso que tentamos transmitir. E criar novas memórias.”

Sem nunca ter estado em nenhum conflito mas conhecendo grande devastação e “pobreza extrema”, em passagens pelo Chile, o padre Gonçalo espantou-se ao chegar à Síria, em Outubro de 2017. “Há um vigor nas pessoas, não é uma normalidade, mas há um vigor que não esperava, um povo que procura não parar. E são pessoas muito acolhedoras e interessadas”, descreve o padre, que passou os primeiros três meses a estudar árabe em regime intensivo.

Gonçalo tem estado quase sempre em Damasco, onde dirige o centro local. Conta que desde Abril, quando os combates e bombardeamentos deixaram de ser permanentessai muito mais à rua e convive com sírios, muitas vezes visitando-os em casa. 

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Homs, a cidade tão fustigada por bombardeamentos do regime de Assad Yazan Homsy/Reuters

O jesuíta português ainda não conseguiu ir a Alepo mas já conhece o trabalho do JRS em Homs. “Isso foi chocante. Fez-me muita impressão, é um cenário de apocalipse. Estavam a deitar abaixo ruínas.” As impressões possíveis de uma visita à cidade durante muito tempo conhecida como “capital da revolução” e onde caíram tantas bombas que bairros inteiros ficaram irreconhecíveis, como se as fachadas dos seus edifícios fossem de papel, prestes a desfazer-se em pó.

Depois da Terceira Provação (última etapa na formação de um jesuíta), o padre Gonçalo sentiu “um apelo muito concreto” para “fazer alguma coisa”, “levar esperança”. Voltou do Chile para Lisboa e por aqui ficou. Mas no dia em que recebeu a carta a conceder-lhe os últimos votos aconteceu-lhe estar na Polónia e conhecer sírios. O apelo interno coincidiu ainda com uma carta do provincial geral da Companhia de Jesus a pedir jesuítas para o Médio Oriente.

Com o “coração” a dizer Síria chegou ao Líbano, onde está o provincial da região que acabou por lhe sugerir como destino Iraque ou Marrocos. Foi o próprio padre Gonçalo que perguntou: “E a Síria?” “O provincial explicou-me que nunca se atreveria a enviar alguém que não quisesse ir”, pelo que a oferta foi muito bem recebida. “Estava à espera de uma realidade mais destroçada, pensava que ia levar vida”, admite. Em vez disso, foi “aprendendo com a vida de quem tem tudo para desistir e não desiste”.

“Todos agradecem a minha presença e sentem-se muito motivados, mas não sonham o que me motivam a mim”, conta o padre que deverá ficar três anos. “Senti sempre paz, o que me fez perceber que estou onde tenho de estar.” Acima de tudo, diz, mais do que por ter ido, os sírios respeitam-no por ter ficado – já lhe perguntaram se queria sair, num momento especialmente duro em Damasco.

Defender os sírios e a justiça

Desde o início da crise que a Síria não recebia novos jesuítas estrangeiros e a presença do padre português leva naturalmente a esperança que ele desejava transportar. Um pouco como a sua vinda e a do padre Fouad a Lisboa espicaçaram os interessados em ajudar. Da assistência choveram todo o tido de perguntas. “Cheguei agora da Grécia, conheci sírios que querem vir para Portugal, é possível?” “Como é que posso ajudar?” “Há maneira de ir como voluntário?” “O que posso fazer pelos refugiados cá?” “O que posso fazer pelos sírios?…”

Não é possível fazer chegar bens e, para já, não está previsto o envio de voluntários, mas para além dos donativos, há sempre formas de ajudar. Muitos ficaram para saber mais: depois de assistirem a uma conferência que começou às 17h30, alguns só deixaram o colégio perto das 21h, depois de conseguirem falar com os padres ou com Ghalia. Queriam agradecer ou apenas insistir: “O que posso fazer?”

O padre Fouad tem umas ideias: “Promover a justiça, chamar a atenção para situações de injustiça e, na medida das capacidades de cada um, repor a justiça”. Ghalia, muçulmana de Damasco orgulhosa de trabalhar entre cristãos, que agora vê futuro para si Portugal, explica que quando a ajudaram ganhou mais forças para ajudar os outros. E no momento em que a palavra “sírio” se tornou para tantos um símbolo de “radical”, lembra que “as pessoas, lá e cá, precisam de ser defendidas”. “Falem, falem em nossa defesa”, pede. Ajudar é também nunca, nunca “esquecer a Síria”.

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