Um ano de revolta: o horror avança na Síria

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Um sírio mostra munições usadas pelo regime junto ao corpo de Muhammed Shawi, 15 anos, morto em Idlib Foto: Bulent Kilic/AFP

O regime sente estar a ganhar, mesmo se perde apoios por cada cidade que recupera. Ontem voltou a matar em Deraa, onde a revolta começou há um ano. A Síria nunca mais será como antes.

A 15 de Março do ano passado houve uma pequena manifestação em Damasco e um grande protesto em Deraa, cidade no Sul da Síria conhecida pelas suas famílias de grandes dimensões. Duas semanas antes, 15 miúdos (vários primos uns dos outros) tinham escrito "o povo quer a queda do regime" nas paredes da sua escola. Foram presos e torturados e a cidade saiu à rua para pedir "justiça, mais direitos e a responsabilização" dos que tinham maltratado as crianças. Bashar al-Assad foi rápido a mostrar como responderia a quem ousasse questioná-lo.

Um ano depois, os sírios ainda não deixaram de sair à rua - aliás, fazem-no em cada vez mais bairros e cidades - e o regime ainda não parou de os massacrar. Damasco, Deraa, Banias e Latakia (Noroeste), Hama (Centro), Deir Ezzor (Leste), Homs (Ocidente), Allepo (Norte), Idlib (Noroeste), o mapa da revolução é cada vez mais o mapa do país. Os mortos, segundo a ONU, são já mais de oito mil, a maioria civis.

Ontem, o Exército sírio recuperou o controlo da cidade rebelde de Idlib, pondo termo a um assalto de quatro dias. A entrada em Idlib acontece duas semanas depois da ocupação de Bab al-Amr, o bairro de Homs que resistiu a um mês de bombardeamentos. Para além das vítimas – em Homs, segundo ONG sírias, foram mortos pelo menos 800 civis – estas operações têm levado à fuga de dezenas de milhares. Muitos tornam-se deslocados internos; os que conseguem passam a fronteira mais próxima, a do Líbano no caso de Homs, a da Turquia para quem foge da região de Idlib.

Mal armados, os combatentes do Exército Livre, grupos de civis ao lado de soldados que desertaram, recuaram de Idlib como antes tinham retirado de Bab al-Amr. Não são um exército, são homens que pegaram em armas para proteger as suas famílias e as manifestações, até que começaram a enfrentar as forças do regime, esperando impedi-las de entrar nos seus bairros.

A expectativa da oposição é que a cada cidade ou bairro que abandonam, estes combatentes se consigam reagrupar em novos lugares, como tem acontecido. A do regime é de acabar por esmagá-los, ao mesmo tempo que se esforça por desacreditá-los. Na segunda-feira, quando os activistas denunciaram o massacre de 26 crianças e 21 mulheres em dois bairros de Homs, o regime decidiu não desmentir estas mortes. Em vez disso, atribuiu-as a "terroristas" interessados em "acusar o regime". É a nova estratégia.

Ontem, o Exército Livre retirou "mais 14 corpos mutilados" de Homs. Os media oficiais noticiaram o massacre de 15 civis, incluindo crianças, por "terroristas armados".

O Exército atacou a Norte e a Sul. Enquanto entrava em Idlib, regressava a Derra com 130 tanques, matando pelo menos 20 pessoas.

Oposição dividida

O aumento da violência nas últimas semanas acompanhou o crescimento da pressão internacional contra o regime mas também sobre a oposição. Os países mais críticos de Assad têm pedido ao maior grupo de opositores, o Conselho Nacional Sírio, para se organizar e ser mais inclusivo. Os massacres do regime em Homs exasperaram os sírios que exigem armas e dinheiro aos opositores. Três importantes membros abandonaram ontem o CNS, dizendo que não querem "ser cúmplices do massacre do povo sírio com atrasos, enganos, mentiras, demagogia e monopolização das decisões".

"Há um ano as pessoas pensavam que isto ia evoluir para um de vários cenários. Ou Assad ia cair muito depressa, ou seria obrigado a reformar o sistema ou esmagaria os protestos com sucesso. Nada disto aconteceu", disse à Reuters Volker Perthes, director do Instituto Alemão para a Segurança e a Política Externa.

"A vitória está próxima", disse Assad há dois meses. "Tenham vergonha. Eu não sou pessoa de abandonar as minhas responsabilidades."

Há poucos analistas que não garantam que Assad está condenado, mas ninguém arrisca dizer quando. Num relatório da semana passada, o think tank International Crisis Group escreveu que "mesmo que o regime sobreviva por algum tempo, é impossível antecipar que venha a prevalecer no fim ou a conseguir restaurar alguma normalidade. Pode não cair, mas vai tornar-se numa sombra de si mesmo, um sortido de milícias que combatem uma guerra civil."

Assad acredita que pode sobreviver e convenceu os seus aliados de que é indispensável. A História dá-lhe razão, escreveu no diário britânico Guardian Chris Phillips, especialista em Médio Oriente. "Assad já tem um modelo a seguir: o do seu pai, que esmagou a Irmandade Muçulmana em 1976-82. Outras estratégias violentas de sucesso na região, como a repressão da rebelião xiita de 1991 por Saddam Hussein e a vitória do governo argelino na guerra civil de 1991-2000, também podem convencer o regime de que conseguirá aguentar-se." Todos mataram dezenas de milhares pelo caminho.

Como o pai, Bashar cultivou a lealdade de algumas unidades militares. Hafez usou as Companhias de Defesa, lideradas pelo irmão, Rifaat. Bashar usa a 4.ª Divisão, chefiada pelo seu próprio irmão, Maher. Ao mesmo tempo, mantém sob intensa vigilância os militares sunitas - o grupo da maioria da população num país governado por alauitas.

Partindo do princípio que não haverá uma acção externa ("ninguém quer intervir"), o diplomata brasileiro que chefia a comissão de inquérito da ONU sobre os abusos na Síria diz que "os grupos da oposição não têm hipóteses, só têm armas leves, quanto muito Kalashnikov". "Estamos a falar de um Estado com um Exército de mais de 300 mil para uma população de 23 milhões. A desproporcionalidade no terreno torna uma solução militar impossível", disse ao PÚBLICO Paulo Pinheiro.

Até quando?

Assad preserva o apoio da Rússia, que já vetou uma resolução no Conselho de Segurança e continua a fornecer armas ao regime, apesar de ter subido o tom das críticas; o do Irão e o do Hezbollah libanês. Dentro da Síria, continuam leais alguns alauitas que temem as represálias da maioria contra a minoria que o Governo privilegiou e empresários com medo da instabilidade. Mas há cada vez mais alauitas e membros de outras minorias, cristãos, curdos ou drusos, envolvidos nos protestos e na oposição armada. E as manifestações entre a classe média de Damasco e de Aleppo não param de crescer.

"Quanto mais o regime matar mais se arrisca a afectar famílias alargadas noutras cidades, engrossando a oposição", escreve Chris Phillips. Assad já não pode considerar seguras as duas grandes cidades, mas a verdade é que a maioria silenciosa de Aleppo e de Damasco ainda não se manifestou. Pergunta Phillips: "Mas irão estes sírios aceitar muitos mais Bab al-Amrs?"

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