“A situação é insuportável, catastrófica, há muitas partes da Síria sem presença médica”

Violência matou 30 a 60 civis todos os dias nos últimos meses, num país onde 80% dos partos acontecem em casa. 2014 foi o ano com mais vítimas e aquele em que pelo menos 1,6 milhões de crianças não foram à escola.

Um membro do Exército Livre da Síria num bairro de Alepo
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Um membro do Exército Livre da Síria num bairro de Alepo Jalal Al-Mamo/Reuters
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Vítima de um bombardeamento das forças de Assad na cidade de Douma: na Síria há feridos e mortos a mais e médicos a menos ABD DOUMANY/AFP

Os países ocidentais estão concentrados no combate aos jihadistas do autoproclamado Estado Islâmico sem se lembrarem do sofrimento quotidiano da população síria. “Já só se fala do Daesh [nome árabe do grupo], mas não das mulheres e das crianças que são mortas, dos corpos destroçados, desventrados, do que os médicos enfrentam todos os dias.”

“Esta guerra faz estragos e mortos civis – 30 a 60 – todos os dias”, desde que uma coligação internacional começou a bombardear os extremistas, em Setembro, denunciou ainda Tawfiq Shamaa, representante da União das Organizações Sírias de Cuidados Médicos (UOSCM) durante uma conferência de imprensa de médicos sírios em Paris. “A situação é insuportável, catastrófica, há muitas partes da Síria sem qualquer presença médica”, diz o médico franco-sírio Obaida al-Moufti.

Em Alepo, a segunda maior cidade da Síria, que o regime tenta reconquistar a diferentes grupos rebeldes, há dois hospitais abertos e outros três que funcionam parcialmente para atender 360 mil pessoas cercadas pelas forças de Bashar al-Assad.

“Não há mais do que 30 médicos de todas as especialidades juntas”, descreve Abdelaziz, um médico da grande cidade do Norte da Síria. “Para além das feridas de guerra, vimos reaparecer doenças como a poliomielite, tuberculose, sarna ou febre tifóide.” Falta equipamento, medicamentos, vacinas.

Outro médico presente no encontro de Paris diz que na região oriental de Ghutta, os subúrbios de Damasco que foram alvo dos ataques com gás sarin em Agosto de 2013, “não há possibilidade de fazer entrar qualquer ajuda humanitária” há mais de dois anos, desde que dura o cerco imposto pelo regime.

Esta rede de cuidados de saúde, que gere 300 postos médicos e 12 dispensários, tenta trabalhar em todas as regiões, independentemente de quem dite as regras. “Somos neutros. Mas sofremos violência de toda a gente e ninguém nos garante seja o que for”, explicam. Nos últimos três anos, registaram a morte de 250 médicos.

Nas zonas controladas pelos radicais, “os médicos são autorizados a trabalhar, mas não há apoio de organizações não governamentais, que abandonaram estes territórios, e os serviços são limitados”, descreve um médico citado pela agência Reuters. Na província de Raqqa, por exemplo, bastião dos islamistas e onde vivem 1,6 milhões de pessoas, não há obstetras, ginecologistas ou pediatras.

De acordo com Oubaida a-Moufti, 80% dos partos acontecem em casa e uma grande parte das crianças não chega a ser vacinada. A UNICEF estima que o conflito afecta de alguma forma oito milhões de crianças, 1,7 milhões das quais estão refugiadas (há 3,2 milhões de refugiados registados pela ONU, para além de sete milhões de deslocados internos).

Dentro da Síria, nos últimos meses de 2014, 670 mil crianças viram as suas escolas encerradas às ordens dos jihadistas, diz a agência das Nações Unidas.

“Em Dezembro, houve um decreto do Estado Islâmico ordenando a interrupção da educação nas áreas sob o seu controlo”, disse em Genebra o porta-voz da organização, Christophe Boulirac. “A justificação é que os programas têm de ser adaptados ou renovados.”

Ao todo, haverá 1,6 milhões de crianças na Síria impedidas de ir à escola por razões de segurança, estima a UNICEF, que confirmou 68 ataques contra escolas ao longo de 2014. Estes ataques “mataram pelo menos 160 crianças e feriram 343”, números “certamente superiores por causa do difícil acesso a informações”.

2014 foi também o ano com mais mortes do conflito que começou como uma revolta pacífica, em Março de 2011. Morreram nos últimos 12 meses 76 mil pessoas, diz o Observatório Sírio dos Direitos Humanos, o grupo com sede em Londres e uma rede de médicos e activistas no terreno que é o único a tentar manter desde o início uma contabilidade das vítimas.

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