Para além da “loucura” de Kim Jong-un

A Cimeira entre as duas Coreias irá definir não só o tom mas a substância do possível encontro entre Kim Jong-un e Donald Trump. O futuro das duas Coreias continua na mão das duas Coreias mais do que na das potências que as rodeiam.

Moon Jae-in e Kim Jong-un sentam-se hoje na zona neutral e desmilitarizada de Panmunjon para negociar o futuro da península coreana. É a terceira cimeira entre as duas Coreias (depois das de 2000 e 2007). Nas últimas semanas, temos assistido a uma série de notícias e declarações que nos levam a querer esperar o melhor para este encontro. Primeiro, a primeira visita ao exterior de Kim Jong-un, desde que assumiu a liderança do país em finais de 2011, para uma cimeira em finais de Março em Pequim com o Presidente chinês Xi Jinping. Segundo, o anúncio de uma visita secreta de Mike Pompeo, atual diretor da CIA e nomeado para o cargo de Secretário de Estado (equivalente a ministro dos Negócios Estrangeiros), a Pyongyang passando a mensagem que Washington está seriamente interessada em negociar com a Coreia do Norte a cimeira histórica, ainda sem data e local, entre Kim Jong-un e Donald Trump. Terceiro, as declarações por parte de Seul que Kim Jong-un quer assinar um acordo de paz para se pôr fim formalmente à Guerra da Coreia (1950-1953) e que deixará de se opor a exercícios militares entre a Coreia do Sul e os EUA bem como a exigência da retirada das tropas norte-americanas da Coreia do Sul em troca da desnuclearização da Coreia do Norte. E, para terminar, há poucos dias, o anúncio por Pyongyang via KCNA, agência de notícias oficial do país, que irá suspender os testes nucleares e de mísseis balísticos intercontinentais e desmantelar as instalações nucleares de Pyunggye-ri no norte do país.  

Num espaço de poucos meses tudo parece ter mudado na região depois da escalada bélica de 2017 e no seguimento da mensagem de Ano Novo de Kim Jong-un revelando a vontade da Coreia do Norte em voltar a sentar-se na mesa de negociações para discutir a sua desnuclearização. O que nos leva a perguntar: o que mudou? Porquê tanta abertura e tão rápida?

A explicação mais forte argumenta que para além das ameaças norte-americanas de um possível ataque preventivo à Coreia do Norte, as mais recentes sanções económicas estão finalmente a surtir efeito pondo em causa a economia nacional e, por conseguinte, a própria sobrevivência do regime. Durante décadas, a Coreia do Norte tem estado sujeita a sanções económicas. Mas graças a técnicas de evasão que foram crescendo em escala, dimensão e sofisticação, foi-se adaptando e conseguindo comercializar bens proibidos – principalmente armamento e munições e minérios –, como relatado num relatório da ONU de Fevereiro de 2017. Agentes norte-coreanos têm recorrido a cidadãos de outros países como facilitadores e usado empresas de fachada, muitas vezes sediadas em países terceiros (China/Hong Kong/Macau/Malásia), que lhes tem permitido ter acesso ao sistema financeiro internacional. No relatório da ONU estava claro porque as sanções não estavam a ter o efeito esperado: a China, um dos cinco membros do Conselho de Segurança das Nações Unidas, aprovou as sanções mas na prática foi fechando os olhos às atividades comerciais norte-coreanas no seu território. Ao mesmo tempo, e desde 2010, a China tornou-se no principal parceiro comercial da Coreia do Norte, representando mais de 90% do seu comércio externo.

Durante anos, a China foi tolerando as ambições nucleares e o comportamento bélico e internacionalmente ilegal da Coreia do Norte. Pequim tem evitado tomar qualquer medida demasiado coerciva que possa desestabilizar ou levar ao colapso do regime e mudar assim o delicado equilíbrio geopolítico da região enquanto os EUA tiverem bases na Coreia do Sul e forem o seu principal aliado militar. Uma possível reunificação da península com a manutenção dessas bases significaria que as forças militares norte-americanas passariam a estar imediatamente do outro lado das fronteiras terrestres chinesas. Para Pequim, a sua política para com Pyongyang tem estado fortemente ligada à evolução das suas relações com Washington.

Com a Administração Trump e as suas posições mais antagónicas face à China, o governo de Pequim parece ter decidido finalmente que a Coreia do Norte estava a afetar negativamente as suas relações com Washington e avançou com o cumprimento das sanções. Nos meses que antecederam a cimeira entre Kim Jong-un e Xi Jinping, dados estatísticos revelam que a China congelou fortemente as suas exportações de produtos petrolíferos, carvão e outros materiais-chave para a Coreia do Norte, colocando a economia norte-coreana sob grande pressão e obrigando Pyongyang a mudar a sua política com o exterior.

O problema desta explicação é desconsiderar a vontade própria de Kim Jong-un e do seu regime em avançar de forma autónoma com esta abertura. Quando, na sua mensagem de Ano Novo, Kim Kong-un anuncia que a Coreia do Norte tinha finalmente alcançado com sucesso o desenvolvimento de armas nucleares e que isto abria “perspetivas brilhantes” para a construção de um país próspero, porque não ler antes que Kim Jong-un decidiu-se pela abertura não por pressão externa mas porque agora tinha uma arma poderosa para as negociações onde iria procurar o apoio externo para o seu desenvolvimento económico?

Enquanto líder da Coreia do Norte, Kim Jong-un tem procurado pôr em prática uma política intitulada byungjin ou, de forma simples, tornar-se numa potência nuclear em conjunto com desenvolvimento económico nacional. As atenções mediáticas têm-se concentrado no desenvolvimento do programa nuclear de Pyongyang e raramente olhado para as pequenas mas importantes transformações económicas no país. Graças à tolerância do governo norte-coreano, os chamados mercados informais (jangmadang) têm proliferado no país e oferecido novas fontes de rendimento para a população norte-coreana e acesso a mais bens alimentares e de consumo (provenientes, na sua maioria, da China). Embora seja difícil ter acesso a estatísticas credíveis, a partir de relatos de quem visita regularmente o país tem-se a perceção de que as condições económicas têm vindo a melhorar substancialmente nos últimos anos nas áreas que têm estado acessíveis a estrangeiros, principalmente em Pyongyang. Com o programa nuclear supostamente completo, Kim Jong-un pode agora estar à procura de dar continuidade e fortalecer a segunda parte da sua política byungjin. Mas para isso necessita do apoio externo, em particular, da que seria a sua parceira ideal, a Coreia do Sul.

Na última cimeira em 2007, Kim Jong-il, pai de Kim Jong-un, e o então Presidente sul-coreano Roh Moon-hyun acordaram em substituir o armistício por um acordo de paz permanente bem como ao fim do programa nuclear norte-coreano em troca de uma forte ajuda económica e energética e melhoria das relações externas. Mas o acordo alcançado nos últimos meses da presidência de Roh acabou por não avançar com a ascensão ao poder na Coreia do Sul de duas presidências conservadoras, Lee Myung-bak (2008-2013) e Park Gyeun-hye (2013-2017), e que foram marcadas por uma tensão constante com Pyongyang. Com a eleição do progressista Moon Jae-in para a liderança da Casa Azul em Seul, Kim Jong-un passou a ter, do outro lado da fronteira, alguém que não só defende a aproximação a Pyongyang mas que foi o chefe de gabinete de Roh e que por isso teve uma década para pensar no que correu bem, no que correu mal e como se pode fazer melhor nesta terceira cimeira. O que não se sabe é o que Moon irá oferecer a Kim para o convencer a dar os primeiros passos para uma desnuclearização de facto que poucos acreditam ainda poder vir a acontecer, apesar das declarações da Coreia do Norte e tendo em conta o comportamento passado de Pyongyang.

A tornar a negociação mais difícil é o que pode Moon oferecer sem ir contra as sanções económicas internacionais ainda vigentes. Ambos os líderes coreanos sabem que têm de sair da cimeira com algo de substancial para que seja vista como tendo tido sucesso e continuar a sustentar o momento de estabilidade e harmonia que se tem vindo a criar nos últimos tempos. Uma cimeira sem qualquer resultado substancial pode simplesmente tornar impossível a cimeira Pyongyang-Washington. Espera-se que Moon teste um conjunto de possíveis pontos de negociação que irão influenciar o encontro entre Kim e Trump. Isto ofereceria a Washington e a Pyongyang alguma indicação do que seria possível nas suas negociações. Neste sentido, é esta cimeira de hoje que irá definir não só o tom dos possíveis encontros posteriores como a sua própria substância. O futuro das duas Coreias continua na mão das duas Coreias mais do que na das potências que as rodeiam.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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