Mais uma machadada no sistema internacional

Atacar porque “é preciso fazer alguma coisa” não pode ser, por si só, uma justificação para uma intervenção militar à luz do direito internacional.

Foi numa sexta-feira 13, à noite, em Washington DC, que Trump anunciou o ataque contra alvos logístico-militares na Síria em cooperação com o Presidente de França, Emmanuel Macron, e a primeira-ministra britânica, Theresa May. Uma data adequada para as reviravoltas ideológicas.

Houve apoiantes de Trump que antes criticavam Hillary Clinton porque esta poderia bombardear a Síria e que durante dois dias passaram a explicar-nos que bombardear a Síria era a coisa certa a fazer (um deles, Sebastien Gorka, alegou na TV que sem os bombardeamentos as armas químicas iriam parar às mãos do ISIS). Houve apoiantes dos bombardeamentos de Putin que tiraram o fim-de-semana para se tornarem pacifistas por dois dias. Houve uma Theresa May, que votou sempre contra a reinstalação de crianças refugiadas sírias, a justificar o bombardeamento em nome das crianças sírias. E há um Emmanuel Macron que avançou para um bombardeamento sem passar pela União Europeia e que certamente alegará que o que é bom para a unidade europeia é a França a agir sozinha.

Como agir perante estas hipocrisias cruzadas? Não certamente presumindo ter na algibeira a solução para a paz e a democracia na Síria que, na verdade, há já muito tempo que ninguém tem. Mas antes tendo um critério de análise que seja minimamente independente das circunstâncias e das conveniências — o que muitas vezes deixa toda a gente descontente, mas nada a fazer.

Quando, em 2013, Obama anunciou a possibilidade de um ataque como o de ontem, escrevi o seguinte: “Se os Estados Unidos da América decidirem intervir unilateralmente, mesmo que ostensivamente para repor a norma da não-utilização de armas químicas, estarão a prolongar o seu próprio poder do mais forte.” O que disse então para Obama é o mesmo que digo agora para Trump, May e Macron. Não faço, como tantos daqueles que nunca cessam de falar de defesa da integridade e da soberania (a não ser quando se calam perante mais uma anexação ou uma intervenção militar de Putin), a apologia do direito de cada tirano a massacrar a população do seu país para se manter no poder. Tem de haver limites ao poder do mais forte, tanto ao nível internacional como ao nível nacional. Mas para que tenham credibilidade, os limites ao poder do mais forte têm eles próprios de respeitar o Estado de direito e o direito internacional.

Atacar porque “é preciso fazer alguma coisa” não pode ser, por si só, uma justificação para uma intervenção militar à luz do direito internacional. Pior: uma intervenção à margem do direito internacional porque “é preciso fazer alguma coisa” é mais uma machadada na credibilidade do próprio sistema internacional (e o mesmo vale para intervenções que foram decididas respeitando o direito internacional mas executadas violando o mandato aprovado na ONU, como aconteceu na Líbia). E a tragédia que estamos a viver na Síria é também o resultado das machadadas no sistema internacional que foram dadas antes, como no Iraque. Dois, três, quatro errados não fazem um certo.

Sim, o sistema internacional está desatualizado. Pior ainda, está bloqueado por um exercício de veto absolutamente cínico por parte da Rússia — que por sua vez não encontra falta de exemplos noutros exercícios de veto igualmente cínicos dos EUA. Mas quem quiser reformar o sistema internacional não o pode fazer desrespeitando sistematicamente a ONU. E se a ONU não funciona, isso não constitui justificação para contornar também as outras organizações internacionais, como a UE.

Se o “fazer qualquer coisa” não pode servir de justificação para intervir à margem do direito internacional, quer isso dizer que não se pode fazer nada? Não. Se ninguém tem na algibeira a solução para a paz e a democracia na Síria, a verdade é que toda a gente sabe o que pode ser feito para minorar pelo menos o sofrimento dos sírios mais vulneráveis: em primeiro lugar, receber refugiados; em segundo lugar, confrontar as potências regionais como a Turquia, o Irão e a Arábia Saudita e deixar de lhes vender armas até que aceitem sentar-se à mesa das negociações; em terceiro lugar, apoiar o único genuíno projeto democrático com implantação na Síria, que é o dos curdos.

Tudo isto não chega. Mas o pior é que, mesmo para apenas isto, seria preciso termos governantes com mais coragem para enfrentar os preconceitos dos seus eleitorados do que para carregar no botão dos mísseis.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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