Brasil, Espanha, Reino Unido: três aliados em apuros

Olhando para este triângulo de interesses, Portugal está cercado pelos ciclos críticos internos destes seus aliados preferenciais.

1. É já um lugar-comum afirmar que a situação internacional tem vindo a degradar-se, sendo marcada por uma grande instabilidade, volatilidade e imprevisibilidade. Todos os sinais são preocupantes e os alertas e alarmes nunca serão demais. Tem sido menos notado que esta crescente instabilidade da cena internacional é essencialmente acompanhada, senão mesmo originada e exponenciada, por uma forte instabilidade na vida interna de múltiplos Estados. Independentemente das linhas de tensão exterior, são muitos os Estados que enfrentam enormes desafios de natureza interna. E descendo ao contexto português e ao ambiente envolvente, não tem sido sequer notado que, porventura, três dos Estados historicamente mais relevantes para a afirmação e a composição do desígnio estratégico português estão a passar por graves crises políticas internas. Na verdade, é absolutamente surpreendente e até desconcertante ver que, por razões aparentemente muito diversas, Estados tão fundamentais para delinear os eixos da nossa posição geopolítica como o Brasil, a Espanha e o Reino Unido estão a viver transes políticos críticos.

2. O Brasil representa, sem nenhuma secundarização nem menoscabo para os restantes países de língua oficial portuguesa, a vocação global, idiossincrática e cultural da nossa estirpe geoestratégica. A Espanha, por sua vez, consubstancia o pólo de alteridade e diferenciação e, já depois de 1986, também – um tanto paradoxalmente – de inserção europeia da nossa linhagem geopolítica. O Reino Unido, finalmente, congraça a dimensão especificamente atlântica e marítima e, bem assim, a vertente de defesa e segurança que garante aquela alteridade peninsular e europeia. Estes três Estados atravessam presentemente enormes desafios políticos, institucionais e constitucionais, com níveis de gravidade diversos, mas ainda assim muito sérios.

No Brasil, a generalização dos fenómenos de corrupção por toda a classe política e a condenação e a prisão do Presidente Lula da Silva geraram uma enorme crise política e institucional e fazem temer pela própria sobrevivência da democracia. Na Espanha, a crise do separatismo catalão não cessa de gerar novos desenvolvimentos, não se antolhando previsível o que poderá ser o desenlace e a solução de um problema com aqueles contornos. No Reino Unido, a decisão de sair da União Europeia, por um lado, e a hesitação e falta de clareza quanto à respectiva negociação, por outro, condicionam e atrofiam toda a agenda política. Neste quadro, e olhando para este triângulo de interesses, Portugal está cercado pelos ciclos críticos internos destes seus aliados preferenciais. Tem obviamente de saber posicionar-se de modo a salvaguardar os activos permanentes dessas relações bilaterais e, bem assim, o que elas representam para o equilíbrio das redes multilaterais em que se integram e projectam (CPLP, UE, NATO).

3. Não vale a pena menorizar a crise brasileira, que é talvez a mais grave destas três. Os tentáculos da corrupção atingiram toda a classe política, da direita à esquerda, o que contraria a narrativa de uma conspiração judicial ou político-judicial contra Lula e o PT. O poder judicial assumiu, desde o início da década, e muito ancorado numa genuína aspiração popular, um programa de depuração da vida política, com claras afinidades com a operação “mãos limpas” em Itália. É, por isso, enganadora a afirmação da pressa em julgar Lula da Silva, já que as investigações, seja em torno do caso “Mensalão”, seja do caso “Lava-jato”, vêm muito detrás. Não tem sentido, pois, a comparação com Temer, a quem decerto chegará a indagação, mas que começou bem mais tarde. É também parcial a impostação de que a execução da sentença depois da segunda instância, mas antes do trânsito em julgado, não tem paralelo noutros Estados de Direito. De resto, custa ver tanta gente falar sem conhecimento da cultura judicial brasileira e da sua tradição, mais próximas do padrão americano do que do europeu continental.

A tragédia brasileira não é a condenação judicial de um ex-Presidente por acusações de corrupção, nem sequer seria a decapitação inteira de um partido, qualquer que fosse a sua ideologia. A tragédia é que a generalização da corrupção pela classe política faz com que a operação em larga escala do poder judicial não deixe de pé nenhuma alternativa política. E o desmoronamento de todo o sistema político-partidário deixa o quadro democrático no vácuo.

No meio de todos estes acontecimentos, há todavia um desenvolvimento virtuoso, que poucos têm sublinhado. Lula da Silva, mesmo não se conformando com a sentença nem com os termos do processo, decidiu respeitar e acatar a ordem judicial e entregar-se voluntariamente. Ao fazê-lo, mostrou respeitar o Estado de Direito, mesmo quando está convicto de ser objecto de uma injustiça flagrante e de perseguição política. Não faltará quem faça o paralelo com o grego Sócrates ao decidir beber a cicuta em vez de aceder ao estímulo dos amigos que queriam que fugisse. Este gesto de Lula tem um significado político e institucional transcendente e deve ser sublinhado. Mesmo que também tenha uma leitura táctica, porque lhe deixa uma maior margem de manobra para uma candidatura presidencial futura ou para o endosso de apoio a outro candidato e não impede, como se vê pelas manifestações em curso, a condução de um movimento de contestação. Seja como for, ao aceitar voluntariamente a decisão, Lula prestou um serviço à democracia brasileira, que poderá ou não ter frutos; mas que contribui visivelmente para não agravar uma situação delicadíssima.

4. Aqui está um domínio em que o Estado português não pode senão actuar seguindo um cânone estritamente institucional, sem estados de alma e sem nenhuma ingerência na vida interna do Brasil. Sobre as graves crises que atravessam a Espanha e o Reino Unido muito há a dizer. Talvez mais infelizmente do que felizmente, não faltarão oportunidades.

SIM e NÃO

SIM. Batalha de La Lys. A comemoração ao mais alto nível dos 100 anos deste evento trágico faz inteira justiça a uma geração e às Forças Armadas, tantas vezes esquecidas.

NÃO. Bloco de Esquerda. A campanha sobre uma conspiração político-judicial no Brasil está para lá de toda a razoabilidade e só tem paralelo na nova moda dos “factos alternativos”.

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