O primeiro dos bufos

Mark Felt – O Homem que Derrubou a Casa Branca não é um grande filme, mas ganha vida à luz das comparações com a Casa Branca de Donald Trump. E justifica uma viagem à história recente dos informadores, dos jornalistas que os aproveitam e dos filmes que os retratam.

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Aqui vai a versão resumida da sinopse de um filme: a Casa Branca manipula a estrutura de poder do FBI de forma a encobrir uma teia de corrupção que põe em causa o próprio Presidente dos Estados Unidos. Tem tudo a ver com Donald Trump, certo? Ainda não. Mark Felt – O Homem que Derrubou a Casa Branca é um filme sobre o homem que fez cair Richard Nixon e desmontou a teia de poder suja que emanava da Casa Branca: o herói que ficou conhecido pela alcunha “Garganta Funda” alimentou durante meses os repórteres do Washington Post com doses regulares de informação que derrubaram Nixon e os seus acólitos nas forças de justiça e segurança, incluindo o FBI e a CIA.

Peter Landesman realizou o filme a partir da autobiografia de Mark Felt, procurando um olhar original que o livrasse de ser comparado a Os Homens do Presidente, o drama de Alan J. Pakula que retratou a investigação jornalística do caso Watergate e é ainda hoje um dos melhores filmes sobre jornalismo alguma vez produzidos. A opção foi arriscada. Mas fazer este filme em 2017 tem uma vantagem: aviva comparações com a actual situação política dos EUA e traz um novo olhar sobre o que se passa nos meandros do poder. Esse é um dos aspectos interessantes de Mark Felt, ainda que indirecto: demonstrar como algumas das coisas que se passam hoje já têm um paralelo histórico. O mesmo se tinha visto com o escândalo dos Pentagon Papers que Spielberg encenou no seu The Post. Em ambos, o protagonista que mal se vê, mas cuja presença é constante, é o mesmo: Richard Nixon, à cabeça de uma estrutura corrupta da Casa Branca cujos tentáculos se espalharam pelos vários ramos da presidência no arranque dos anos 1970.

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A história é merecedora de um intrincado policial: aquando do assalto aos escritórios do Partido Democrático, no edifício Watergate, há uma intervenção directa do presidente americano sobre o FBI, que se vê obrigado a reduzir ao mínimo a investigação. Como se sabe, o objectivo era encobrir que a origem das ordens para o assalto tinha vindo da própria Casa Branca. Mark Felt, o número dois do todo-poderoso J. Edgar Hoover, contava suceder ao director do FBI, mas foi passado para trás precisamente porque Nixon não confiou nele para obedecer aos ditames políticos de um presidente republicano que tinha muito pouco respeito pelas regras democráticas.

Para contar isto, Landesman optou por montar um conjunto de cenas à volta de Felt, dando destaque à forma como os vários poderes se relacionam em Washington e cedendo à própria burocracia que relata. A esse nível, pode ser uma interessante peça de arquitectura política, mas quando isso se sobrepõe ao ritmo cinematográfico, o espectador tem um problema.

Os delatores heróis

Peter Landesman, o realizador, tem sólidos pergaminhos no jornalismo: foi repórter de guerra no Ruanda, no Kosovo e no Afeganistão, tendo prosseguido a carreira como jornalista de investigação, no âmbito da qual assinou vários trabalhos notáveis sobre tráfico de drogas, exploração sexual de mulheres, redes de falsificação de antiguidades e a violência dos gangues em Los Angeles. Quando se dedicou ao cinema, levou a mesma abordagem da investigação: em Parkland retratou as pessoas anónimas que estiveram envolvidas no que aconteceu antes e depois do assassinato de John F Kennedy em Dallas; a seguir fez A Força da Verdade, com Will Smith, em que levou a bom porto a história de um bufo que pôs em causa o enorme negócio do futebol. Agora voltou a pegar numa história de um denunciante anónimo, aquele que ficou conhecido como “Garganta Funda”.

A história política, e em especial a história recente dos Estados Unidos, está cheia de denunciantes que se tornaram famosos. É impossível não pensar imediatamente em Edward Snowden, autor da maior fuga de informação na história dos serviços secretos norte-americanos – que o cinema já tratou bem no filme homónimo de Oliver Stone e principalmente em Citizenfour, o documentário de Laura Poitras que expõe todo o ambiente explosivo em torno do processo que transformou Snowden num pária. E não é possível falar de filmes sobre "whistleblowers" (delatores) sem referir o expoente máximo do género, O Informador (1999). A obra do mal amado Michael Mann tem duas grandes interpretações, com Russel Crowe a revelar os segredos da indústria tabaqueira aos jornalistas do programa televisivo 60 Minutes, de que Al Pacino é produtor, e tem acima de tudo uma dimensão de imperfeição que revela todos os dilemas do próprio acto de trair que vem com todas estas narrativas.

E no fundo é isto que falta a Mark Felt. Como o cineasta assume a fidelidade ao texto autobiográfico, o corte é a direito: a personagem não tem dúvidas, os princípios morais são elevados e o interesse superior da nação norteia sem hesitações o que se faz. É uma história que se torna, ironicamente, difícil de engolir. E a que falta dimensão narrativa, estando demasiado presa a uma só personagem que tenta ser inflexível quando todo o mundo político desaba à sua volta. Essa lógica estrutural do filme não ajuda a desvendar as complexidades morais por detrás de uma acção de denúncia. A história reconhece que Mark Felt revelou o que se passava no FBI em grande medida por se ter sentido despeitado ao não ter sido promovido.

Nada disto é propriamente extraordinário: desde Júlio César que o despeito é uma poderosa ferramenta em política, capaz das maiores transformações. Os golpes palacianos que levaram Nixon à queda não são muito diferentes dos que deverão precipitar Trump, enredado em negócios sujos e em tentativas de encobrimento que envolvem igualmente o despedimento de figuras do braço judicial do sistema. Só a figura principal será diferente. Quando, daqui a uns anos, se fizerem os filmes sobre a queda de Donald Trump, o herói será Robert Mueller, o procurador especial que está a montar um cerco impiedoso ao Presidente americano. Na era da transparência e da abundância de informação não há menos negócios sujos, mas há menos espaço para delatores anónimos escondidos em garagens.

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