Há um cheiro a Watergate em Washington, 45 anos depois

Tal como Nixon, Trump afastou o responsável por uma investigação de que é alvo. Em Washington, vem à memória o escândalo Watergate, que não acabou bem para o Presidente dos EUA.

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James B. Comey tomou posse em Setembro de 2013 Reuters/Carlos Barria
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O advogado de 56 anos cumpria o terceiro ano Reuters/Kevin Lamarque
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Trump terá seguido a orientação do Procurador-geral Reuters/JOSHUA ROBERTS
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O director do FBI tomou conhecimento do despedimento pela televisão e achou tratar-se de uma partida Reuters/Joshua Roberts
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O comunicado de Trump que oficializa a decisão Reuters/JOSHUA ROBERTS

O director do FBI James B. Comey estava numa reunião em Los Angeles quando um televisor na sala transmitiu a notícia de que tinha sido despedido esta terça-feira pelo Presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. Comey, que cumpria o terceiro de dez anos de mandato, soltou uma gargalhada e pensou tratar-se de uma partida. Mas, de imediato, membros do seu staff aproximaram-se e pediram a Comey que os acompanhasse a uma sala ao lado, segundo conta o The New York Times esta quarta-feira. Instantes depois, o até ontem director do FBI recebia a confirmação do seu despedimento.

A aparente incredulidade de Comey perante a notícia da sua demissão sublinha a surpresa com que a decisão de Trump foi unanimemente recebida. Oficialmente, e de acordo com cartas prontamente divulgadas pela Casa Branca, o Presidente dos EUA despediu o director do FBI após uma recomendação do procurador-geral, Jeff Sessions.

O motivo apontado é uma suposta quebra de confiança em Comey pela forma como este geriu a investigação aos e-mails da candidata presidencial democrata Hillary Clinton (primeiro afirmou que a antiga secretária de Estado não deveria ser acusada de crime algum, depois incendiou a campanha eleitoral ao anunciar a reabertura do processo, a 11 dias da votação). No entanto, Trump beneficiou eleitoralmente da polémica gestão desse dossier, que lesou a imagem da adversária, tendo até elogiado Comey, publicamente e por diversas vezes, pela condução do processo.

“O que ele fez recuperou a sua reputação”, elogiava Trump à data. (Na semana passada, Comey defendeu no Senado a decisão de reabrir a investigação ao caso dos e-mails. Ainda ontem, porém, tinha corrigido parte do testemunho, explicando que apenas "alguns" e não "centenas e milhares de e-mails" foram reencaminhados pela assessora de Hillary, Huma Abedin, para o agora ex-marido Anthony Weiner.)

Em Washington, no Congresso e nos jornais, as atenções viram-se antes para outro caso: a investigação do FBI à interferência russa nas eleições de Novembro, onde o cerco a Trump e aos membros do seu gabinete se continua a apertar. Terá o Presidente dos EUA recorrido a uma "bomba atómica" para travar um processo cada vez mais incómodo?

As declarações públicas do chefe de Estado não ajudam à sua defesa. O despedimento do director do FBI surge um dia depois de Trump ter afirmado que o caso russo não passa de uma “conspiração” e ter questionado quando é que a suposta “charada paga pelos impostos dos contribuintes [iria] parar”. Mas nem é necessário recorrer, uma vez mais, ao Twitter de Trump. Basta ler a carta que o Presidente enviou a Comey na terça-feira, anunciando a sua decisão: “Apesar de agradecer que me tenha informado, em três ocasiões distintas, que não estou sob investigação, não deixo de concordar com a avaliação do Departamento de Justiça de que não está apto para liderar de forma eficaz”A investigação referida é a da interferência russa no processo eleitoral, e sobre o caso dos e-mails de Hillary não há qualquer menção na missiva.

É difícil encontrar precedentes para o que aconteceu ontem em Washingon. Em 1993, Bill Clinton também despediu um director do FBI, William Sessions, mas em causa estava um escândalo de uso indevido de fundos públicos por parte do responsável da agência federal de investigação. 

Há, no entanto, outro caso que é recordado insistentemente desde a noite de terça-feira: o Watergate, que levou à primeira e única demissão de um Presidente norte-americano. A 20 de Outubro de 1973, Richard Nixon afastou Archibald Cox — não o director do FBI (tal como é sublinhado pela Biblioteca e Museu Presidencial Nixon), mas antes o procurador especial que conduzia a investigação ao envolvimento do Presidente republicano no assalto à sede do Partido Democrata, e à tentativa de o encobrir. Em todo o caso, estabelece-se o paralelo entre dois Presidentes que tentam travar processos incómodos de que são alvo.

Mas mais importantes do que as referências nas redes sociais, onde o termo "nixonian" se tornou viral, são as declarações de altos responsáveis democratas e republicanos. 

Mesmo entre colaboradores próximos de Trump surgem referências ao Watergate. "Dick Nixon está a sorrir algures", tweetou Roger Stone, o homem que prepara dossiers para os republicanos sobre os "esqueletos escondidos" dos adversários eleitorais democratas. Ainda no campo republicano, mas na facção crítica de Trump, o antigo candidato presidencial John McCain afirma que "o momento do despedimento [de Comey] é profundamente preocupante". 

"Estou preocupado em relação ao momento e à justificação da demissão do director Comey", declarou ainda o senador republicano Richard Burr, presidente do comité do Senado para os serviços secretos, que considera o afastamento do director "uma perda para o FBI e para a nação".

É, contudo, do campo democrata que, sem surpresa, surgem as críticas mais veementes. Para o senador Bernie Sanders, adversário de Hillary nas primárias de 2016, a decisão de despedir o director do FBI neste momento “levanta sérias questões sobre o que está a Administração [Trump] a esconder”. O democrata considera "claro" que o nome que será escolhido por Trump e confirmado pelo Senado "não irá conseguir conduzir objectivamente a investigação à Rússia".

"O despedimento de Comey mostra o quanto a Administração Trump está assustada com a investigação da Rússia", disse, por seu turno, o senador democrata Tim Kaine, candidato a vice-presidente em 2016. Fala-se mesmo em "crise constitucional", como referiu o senador democrata Richard Blumenthal. Ron Wyden, senador do Oregon e outro membro da comissão do Senado para os serviços secretos, já veio exigir uma audição pública sobre o estado da investigação às ligações entre Rússia e Trump à data em que Comey foi despedido.

De Moscovo também surgem críticas. Não do Kremlin, mas de Edward Snowden, o antigo agente da NSA que fugiu dos EUA e revelou a dimensão global da máquina de espionagem electrónica de Washington. O dissidente lembra que Comey tentou, "durante anos", colocá-lo na prisão, mas que, mesmo assim, é contra o seu despedimento. “Se eu me consigo opor ao seu despedimento, vocês também [conseguem]”, argumenta. Noutra mensagem, Snowden afirma que "todos os norte-americanos devem condenar esta interferência política no trabalho da agência".

Entretanto, Trump tinha marcado para as 15h30 (hora de Lisboa) desta terça-feira um encontro com o ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Serguei Lavrov, na Casa Branca.

No editorial desta quarta-feira, e seguindo os apelos de vários senadores como os democratas Chuck Schumer e Blumenthal, o The New York Times apela a uma “investigação minuciosa e imparcial à interferência da Rússia nas eleições presidenciais de 2016 em nome de Donald Trump”, em nome da “credibilidade da mais velha democracia do mundo”, agora conduzida por um procurador especial. O diário de referência nova-iorquino também não crê na justificação avançada pela Casa Branca: “Comey merece todas as críticas pela forma como conduziu a investigação [aos e-mails de Hillary], mas essa não é, certamente, a razão pela qual Trump o despediu”.

Por agora, Trump e os seus apoiantes recorrem precisamente às críticas democratas a Comey, e à forma como este conduziu a investigação a Hillary, para justificar o afastamento do director do FBI.

Neste momento, a agência de investigação é liderada interinamente por Andew McGabe. Cabe agora ao Presidente nomear o próximo director, cujo nome terá de ser aprovado pelo Senado.

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