O longo calvário dos trabalhadores a recibo verde

Os recibos verdes que são mesmo recibos verdes podem sair altamente prejudicados pelo novo regime contributivo.

Os trabalhadores a recibo verde são há muitos anos os verdadeiros espoliados do mercado laboral português, por razões que me dispenso explicar — todos nós já passámos recibos verdes ou conhecemos quem os passe. É também fácil de perceber que a principal vocação dos sindicatos é proteger os seus associados — quase sempre trabalhadores do quadro —, o que empurra quem está a recibo verde para uma posição de enorme fragilidade: à falta de segurança no trabalho adiciona a falta de representação nas negociações laborais. A única boa notícia é que a consciência de quão injusta esta situação é, sobretudo no caso dos falsos recibos verdes, tem vindo a crescer nos últimos tempos, e a constituição de associações como os Precários Inflexíveis tem contribuído para dar alguma voz, e algum poder reivindicativo, a quem até há bem pouco tempo só tinha deveres para com o Estado e quase nenhuns direitos.

No ano passado, o PS e o Bloco de Esquerda juntaram-se para negociar mais uma alteração ao regime de contribuições dos trabalhadores a recibos verdes. As alterações anteriores tinham conseguido um extraordinário feito: penalizar ainda mais as suas vidas. A nova alteração corrige injustiças óbvias, e foi inclusivamente saudada pelos Precários Inflexíveis. Mas desvaloriza um aspecto muito significativo — a existência de recibos verdes que são mesmo recibos verdes e de empresas a pagar trabalhos pontuais que são mesmo trabalhos pontuais. E estes — os verdadeiros recibos verdes — podem sair altamente prejudicados pelo novo regime contributivo, que obriga as empresas responsáveis por mais de 50% do rendimento anual de um trabalhador a ter de pagar 7% desse valor à Segurança Social (10% se a dependência económica em relação a uma única entidade contratante for superior a 80%). O Governo estima que a receita assim arrecadada suba dos 23 milhões de euros actuais para próximo dos 93 milhões — quatro vezes mais, ou seja, 70 milhões de euros à custa de taxar muitas empresas que não estão a cometer ilegalidade alguma.

Adivinhem o que vão fazer essas empresas? Não precisam de adivinhar, porque Sónia Maia, tradutora, enviou-me um mail a explicar tudo: “Na ânsia de proteger os falsos recibos verdes, o novo regime irá destruir a carteira de clientes dos verdadeiros trabalhadores independentes, a qual lhes demorou muitos anos e muito esforço a construir e a fidelizar.” Os tradutores são um excelente exemplo do que está em causa. Trabalham de forma independente em suas casas, pagam computador e electricidade, não dependem de hierarquias, exercem a actividade às horas que querem — trocam menos protecção no emprego por mais liberdade. Ou será que devia ter escrito “trocavam”?

Sónia Maia outra vez: “A consequência prática disto é que o cliente, obviamente, passará a reduzir o volume de trabalho que entregará ao trabalhador, para evitar a penalização; ou poderá mesmo substituí-lo por sociedades unipessoais que prestem o mesmo tipo de serviços. Isto levará o trabalhador independente a perder o seu melhor cliente... e então o segundo melhor passará a ser o melhor, cairá também na regra dos 50% e terá a mesma reacção do primeiro.” Um resultado possível, como diz Sónia Maia, é o tradutor perder os melhores clientes e ir engrossar os números do desemprego — ou então passar ele próprio a suportar os 7% que competem à empresa. Qualquer uma das opções é péssima. O calvário do trabalhador a recibo verde está ainda muito longe de terminar.

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