Gente do passado não faz países de futuro

O PSD é afinal o molde que melhor retrata a imagem do Portugal contemporâneo: um país hesitante, voluntarista, dado ao acaso ou ao desenrascanço, incapaz de definir um rumo para o longo prazo, ora deprimido com a crise, ora eufórico com o seu fim.

Anda por aí meio mundo preocupado com o vazio ideológico que paira sobre o PSD. E outro meio satisfeito por pressentir que o velho partido de Sá Carneiro está a um pequeno passo de se esfrangalhar em pedaços. Tanto dramatismo e tanta ansiedade só se justificam porque o PSD se confronta com a construção de um PS forte como poucas vezes o foi no passado, com um CDS aberto à reinvenção de um populismo cosmopolita de fachada conservadora e um quadro político que confere à esquerda uma vantagem que nunca teve. De resto, haja calma. Na essência, a luta de galos que se adivinha no PSD faz parte de uma longa e bela tradição; o PSD é ao mesmo tempo de esquerda, do centro ou de direita e pode até não ser nada disto; o PSD é um partido que adora o dramatismo e inventa protagonistas para o garantir; com todos os defeitos e virtudes, o PSD é afinal o molde que melhor retrata a imagem do Portugal contemporâneo: um país hesitante, voluntarista, dado ao acaso ou ao desenrascanço, incapaz de definir um rumo para o longo prazo, ora deprimido com a crise, ora eufórico com o seu fim.

O PSD que se antevê depois das directas e do congresso do próximo ano nada tem que ver com o PSD de Passos, como Passos nada tinha que ver com o PSD de Cavaco, nem o PSD de Cavaco com o PSD de Balsemão, de Mota Pinto ou de Sá Carneiro. Dizer que o PSD que aí vem será mais à esquerda ou à direita, mais amigo da economia ou das políticas sociais não passa de um exercício com 50% de possibilidades de dar certo. Porque o PSD, seja com Rui Rio, com Santana Lopes ou com qualquer outro, será o que as circunstâncias o ditarem. Em primeiro lugar, as circunstâncias da Europa. Mas também as circunstâncias internas – maioria ou minoria, mais ou menos dinheiro em caixa, mais ou menos poder de influência de o lobby A ou B. O PSD será liberal à imagem de Sá Carneiro, se precisar, e social-democrata à moda de Mota Pinto, se tiver de ser. Lembram-se o que fizeram as circunstâncias a Passos Coelho? Pois, obrigaram-no a meter a retórica ultraliberal no saco e a governar ao centro – o tal “projecto liberal interrompido” sobre o qual David Dinis escreveu este domingo no PÚBLICO.

Pela luta política que se antevê, poderá haver, sim, diferenças no estilo. Rui Rio e Santana Lopes (se avançar, como se julga) têm tanto em comum como de diferente. São ambos viciados na política (o que não é um mal em si), fazem parte de uma geração estafada pelos discursos em congressos e em reuniões da comissão política, adoram os seus umbigos acima de tudo e destacam-se por não terem a densidade de pensamento de Paulo Rangel ou de José Pacheco Pereira. Se Rui Rio é um homem austero e rigoroso, Santana tem a seu favor o gosto pela vida e o prazer da vida mundana. Se Rui Rio é propenso ao autoritarismo e à intolerância contra todos os que o questionam, Santana tem outra pele, mais dura e lubrificada por um código de valores que admite a crítica e a liberdade de expressão. Santana Lopes é um aventureiro com aura de romance a quem por vezes falta consistência, disciplina e estudo; Rui Rio é um manga-de-alpaca que reduz o mundo a uma folha de cálculo meticulosa e eticamente inatacável – é dos poucos políticos a quem se pode comprar um carro em segunda mão sem recear engano.

Venha quem vier, a menos que apareça ao virar da esquina um militante inesperado com necessidade de fazer a revisão de um carro, o PSD terá pela frente uma enorme dificuldade em bater-se com um PS colossal. Passos estava condenado à transformar-se num saco de boxe eleitoral porque foi incapaz de provar que havia um diabo para demolir a aura de Costa, um mestre imbatível no ilusionismo político. Não se vislumbra como poderão Rio ou Santana contornar esse trunfo que faz o país regressar aos tempos do oásis. Porque, mais do que competência ou gravitas concedida pelos cabelos brancos, a política em Portugal requer nestes tempos dados ao facciosismo um pouco mais de rasgo, de imaginação, de intuição, de brilhantismo e de novidade. Condições que nem Rui Rio, nem Santana Lopes parecem ser capazes de garantir. Eles são homens da geração dos fundos estruturais, não líderes do Portugal que se insinua nos dilemas do pós-troika.

É aqui que se encontra o problema maior do PSD destes tempos: a sua incapacidade de surpreender. O país que saiu do ajustamento exibindo uma notável capacidade de resistência das empresas, um óbvio talento da sua sociedade civil, uma clara excelência das suas instituições científicas e uma indiscutível resiliência de muitos dos seus serviços públicos merecia algo mais do que mais do mesmo. Merecia que o PSD fosse aquele partido plástico, pragmático e sintonizado com o futuro e não uma organização tolhida e condenada a recuperar duques do passado. Precisava que o PSD se envolvesse de novo naquelas lutas de bastidores em que a baixa política urdia um pano de fundo que forjava bons líderes e bons projectos. Necessitava de recuperar os tempos em que era capaz de atrair o melhor que havia nas empresas ou nas universidades.  

Mais do que saber se Rio está à esquerda e Santana à direita ou até se o PSD está desde já aberto ou não a um Bloco Central 2.0, o que custa é suspeitar que o partido dificilmente será mais do que um bloco conformista e conformado aos valores, à prática e ao discurso de uma geração que já fez o que tinha a fazer. O próximo líder não precisa de atacar os valores fundamentais do legado de Sá Carneiro e de Mota Pinto (tantas vezes esquecido) para, como fez Passos Coelho, propor a liberalização dos despedimentos sem justa causa ou enveredar pela sagrada religião do empreendedorismo como se o país precisasse de ser refundado. Não teria de se ungir com as teologias neoliberais sobre o trabalho para se demarcar de um PS que permanece no centro maquilhado com tons de esquerda. O PSD precisava apenas de sublinhar os seus pergaminhos reformistas, de criar ideias novas, de retirar a gestão do Estado e das suas clientelas do centro das suas prioridades e de avançar com propostas modernas e irreverentes.

Santana Lopes, porém, preferirá quase de certeza discursos dengosos e medidas de administração corrente. Rui Rio será certamente mais ousado, mas acabará tarde ou cedo entretido em conflitos com juízes, agentes culturais, jornalistas ou quem no PSD o ouse desafiar. Homens de outro tempo, o que lhes sobra em experiência falta-lhes em rasgo para perceber que o Portugal de hoje precisa de um projecto para se libertar da armadilha do crescimento médio em que caiu. Precisa de repensar o Estado (calma: ninguém falou em matar políticas sociais), precisa de dar lastro aos mais jovens e aos empresários, precisa de apostar na ciência, na educação, na qualificação, na competitividade ou na equidade social. Mais do que serem à esquerda ou de direita, o problema de Rio e de Santana, e o do PSD, é que ambos parecem ser condenados a serem alter egos de Costa. Alguém quererá cópias, tendo acesso ao original?

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