O capitalismo também se abate (mas não vai ser pêra doce)

Cinco rapazes de esquerda com vontade de mudar o mundo – ou pelo menos de festejar, em cima do túmulo de Margaret Thatcher, a ideia de que há alternativa ao sistema que nos venderam como intransponível. Com Rumor e Alvoradas, o Raoul Collectif leva a imaginação ao poder no Festival de Almada.

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Fundado em 2009 por cinco actores saídos do Conservatório de Liège, o Raoul Collectif estreia-se em Portugal com este que é o seu segundo espectáculo, sucedendo a Le Signal du Promeneur: Rumor e Alvoradas Céline Chariot

Romain David, Jérôme de Falloise, David Murgia, Benoît Piret e Jean-Baptiste Szézot, os cinco rapazes que se vão sentando numa mesa redonda do bar do Théâtre de Namur e empilhando cervejas em cima da entrevista pós-espectáculo combinada dias antes com um jornal do país do Sul da Europa onde certo governo socialista apoiado pela esquerda à sua esquerda dura há mais tempo do que o previsto, não têm idade para poder dizer que andaram a pintar soundbytes de Raoul Vaneigem (que na altura se chamavam slogans, e mais lá atrás ainda palavras de ordem) nas paredes de Paris circa Maio de 68 – ou então, como também terá acontecido nessa interrupção do normal curso do século XX em que a imaginação esteve no poder e ser realista era exigir o impossível, a descobrir praias debaixo dos passeios de betão e desertos mexicanos (portanto mágicos) nas ruínas do que um dia foi um serviço público audiovisual.

Nascidos entre as décadas de 80 e 90, ou seja já depois do fim da História, nos amanhãs que cantam da indisputada hegemonia, agora global, do capitalismo, os cinco fundadores do Raoul Collectif (que daqui por diante, e não apenas por comodidade, passaremos a tratar indiferenciadamente por Raoul, o que já nos teletransporta para esse tempo de militâncias clandestinas e operações com nome de código de que têm tantas saudades, apesar de não o terem realmente vivido) não podem fazer mais do que recriar num palco, com camisolas de gola alta e o nevoeiro impenetrável de cigarros fumados atrás de cigarros, o momento terminal em que se passou – em que passámos – do pensamento utópico, talvez mesmo revolucionário, ao “There Is No Alternative”, o mantra terminal de Margaret Thatcher (que daqui por diante, e não apenas por comodidade, passaremos a tratar indiferenciadamente por TINA).

Rumor e Alvoradas, o fulgurante espectáculo que têm em digressão desde Novembro de 2015 e que este sábado trazem ao 34.º Festival de Almada (Escola D. António da Costa, 22h), é a reconstituição, militantemente fantasiosa (deserto mexicano incluído, e também algumas piadas futuristas sobre bulgur e aquele rapaz mais baixinho, mas que a TINA acharia giro, que ganhou as presidenciais francesas), desse instante decisivo para vários milhares de milhões de pessoas, à micro-escala de uma emissão radiofónica que a nova ordem mundial da produção desenfreada e do consumo idem aspas tornará primeiro ociosa e depois consumadamente obsoleta. Foi a esse vetusto estúdio de rádio que não teremos dificuldade em situar na França dos anos 70 – ainda que eles sejam maioritariamente belgas, ou exactamente por isso… – que os cinco actores formados no Conservatório de Liège foram parar depois da interminável caminhada do espectáculo anterior, Le Signal du Promeneur, com que, depois de intermináveis leituras e de intermináveis saídas into the wild nas Ardenas e nas Cevenas, se estrearam como colectivo (ou seja, como Raoul, Raoul, Raoul, Raoul e Raoul) em Janeiro de 2012.

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Não havia, dizem ao Ípsilon na noite em que os encontramos em Namur, bem no fundo da Bélgica, outra sequência possível: a essa primeira exploração dos destinos de indivíduos em ruptura com a sociedade (uns reais, outros inventados pela literatura), mas também das pulsões primordiais por trás desse abandono radical das coisas do mundo e do preço a pagar por ele, era forçoso que se seguisse uma reflexão sobre a capacidade de resistência de um colectivo (e daí vieram perguntas difíceis do tipo “como fazer um espectáculo em conjunto?” ou, mais difícil ainda, “como fazer para mudar o mundo?”). “A passagem de Le Signal du Promeneur a Rumor e Alvoradas aconteceu muito naturalmente, foi um novelo que fomos desenrolando, e que continuamos a desenrolar.

Ao longo da enorme digressão de 173 datas que fizemos com o primeiro espectáculo – a que a dada altura tivemos de pôr em ponto final porque tínhamos vontade de mergulhar num segundo processo de criação –, recebemos imensas reacções. Embora a peça tratasse de pessoas solitárias em ruptura com os modelos estabelecidos, disseram-nos várias vezes que também dizia muito acerca da ideia de grupo, de comunidade, e isso pôs-nos nesta direcção. E depois havia ainda os temas que tínhamos começado a tratar em Le Signal… mas que não estavam completamente esgotados, nem completamente conseguidos – retomámo-los logo a seguir numa viagem ao México, onde aprofundámos essas questões e outras, novas, que a viagem nos suscitou.” E, que, claro, também não se esgotam em Rumor e Alvoradas: “Novamente, este espectáculo levou-nos a questões que até hoje, mais de um ano e meio depois da estreia, ainda nos fazem comichão. Começamos agora a mastigá-las. Talvez venham a dar coisas que não são teatro, mas que em todo o caso serão a continuação deste processo.”

Um mundo em desuso

Tal como para o primeiro espectáculo, a caminhada até à estreia deste que veremos em Almada, e que nos porá a assistir ao vivo, como se estivéssemos no estúdio, à 347.ª (e última) emissão do magazine radiofónico Épigraphe (que, hélas, rima com “épitaphe”), foi “lenta e longa”. “Seis meses de ensaios puros e duros”, precisa um Raoul, a que é preciso juntar as muitas reuniões intercalares que os precedem, marcadas com antecedência num calendário rigoroso que alterna encontros rápidos para troca de livros, documentários e outras pistas de investigação, “residências intensivas de várias semanas no campo”, e ainda as viagens a cinco que, sublinha outro Raoul, são “hiper-importantes”. Nos brainstormings colectivos, partilham tudo o que leram, viram e ouviram nos intervalos em que vão cada um à sua vida (“Teatro, contos, aulas, actividade política… Achamos saudável que tenhamos todos projectos paralelos lá fora”): “Reencontrarmo-nos é sempre um acto de prazer, de redescoberta, não é um acto anódino, uma rotina a ser cumprida – é fundamental, esse vaivém entre estarmos juntos e separados. Tal como é fundamental o facto de não haver um líder intelectual no grupo – é bom deixar a coisa oscilar em função das aspirações de cada um, por mais que isso arraste os processos.”

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Mas se há regra neste colectivo em que todos são ao mesmo tempo actores (formação de base que um espectáculo como Rumor e Alvoradas tem escrita na testa), autores e encenadores, é a de que os projectos de improvisação na base de cada possível cena têm forçosamente de incluir os cinco. É uma aprendizagem que vem de Le Signal…: “O método de trabalho influencia decisivamente a forma teatral que o espectáculo acaba por assumir – e o anterior ressentia-se de certas tomadas de posição individuais.” Quanto ao resto, cada um lê, vê e ouve o que acha útil – e no Raoul Collectif todos lêem, vêem e ouvem muito. No caso de Rumor e Alvoradas, a pesquisa incidiu principalmente sobre a história política do século XX na Europa e, em particular, sobre o Maio de 68. O que nos leva de novo a Raoul Vaneigem (n. 1934) – “o outro” situacionista, que qualquer Wikipédia cita abaixo, e não ao lado, de Guy Debord, ainda que tenha escrito um livro tão decisivo para o movimento como A Sociedade do Espectáculo: a Arte de Viver para a Geração Nova, igualmente publicado em 1967. “Debruçámo-nos imenso sobre os modos de vida alternativos que ele defendeu quando preparávamos o primeiro espectáculo, porque víamos naquelas rupturas individuais uma tentativa de encontrar uma maneira de viver, mais do que de apenas sobreviver, e essa temática atravessa a obra do Raoul Vaneigem. Mas o nome é uma piscadela de olho, não o empunhamos como uma bandeira. Na verdade também escolhemos este nome porque Raoul, aqui na Bélgica, soa já muito rural, muito em desuso, e isso divertia-nos.”

A força do imaginário

Seja como for, continua a haver muito Raoul Vaneigem em Rumor e Alvoradas, o espectáculo em que encenam a crise do colectivo (espécie em vias de extinção, como todos os bizarros animais que a certa altura um dos cinco intelectuais de gola alta desta fictícia emissão radiofónica enumerará ao microfone de Épigraphe), mas em que também matam a TINA e depois inventam um deserto onde o impossível é possível (incluindo recomeçar tudo do zero). “O Raoul Vaneigem escreveu uma série de obras e de panfletos que denunciavam a morbilidade do sistema capitalista e que exigiam a queda desse mundo, para criar outro onde a vida fosse mais respeitadora do ser humano. Para nós, esses escritos são fontes inesgotáveis de energia viva. Tal como os contradiscursos em geral… Tudo o que possa intervir contra o discurso dominante interessa-nos, tudo o que possa raspar o sistema…”.

Mas também há um legado negro no legado da Internacional Situacionista, uma ferida aberta que eles esgravatam aqui: “O divórcio entre o Guy Debord e o Raoul Vaneigem é de uma violência impressionante, tendo em conta que eles tinham construído um projecto político revolucionário com ideias muito fortes de colectivo e de vida em comum. Mas é um reflexo humano que é fascinante de observar: muitas vezes as facções passam mais tempo a matar-se entre si do que a combater o inimigo. É algo que vemos hoje na esquerda, e mesmo na esquerda da esquerda.” Sobretudo, frisam, em tempos de austeridade, como aqueles com que se confronta este grupo de intelectuais cujo programa é o primeiro a desaparecer da grelha quando há cortes orçamentais: “Identificamo-nos muito com esse contexto enquanto artistas, porque também na Bélgica estamos submetidos a regras de austeridade muito fortes. Talvez vejamos nessa queda o nosso próprio futuro, porque quando há austeridade vemos bem como é difícil mobilizar um sector inteiro – e como é fácil pôr as pessoas a atacarem-se umas às outras dentro do seu próprio sector. Mas o inimigo faz de propósito, o inimigo divide.”

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Rumor e Alvoradas é o espectáculo em que Raoul, Raoul, Raoul, Raoul e Raoul se dispuseram não só a encarar como a vestir a camisola do inimigo e a defender aquilo em que não acreditam “de todo” – “coisas que detestamos, a ideologia de direita, os Chicago Boys…”. Mas apenas como uma etapa preliminar, porque há uma revolução a fazer e ela vai ser feita: “Quando, no fim, nos metemos no deserto, não estamos simplesmente a fugir do mundo. Estamos a dar ao grupo um espaço mental para ele se reconstituir, se recentrar, cerrar fileiras e interrogar as coisas de outro ângulo, opondo à realidade a força do imaginário que a TINA anula. Enquanto cidadãos, acreditamos que apesar de tudo há alternativas, são testadas a toda a hora. E mesmo que não pudéssemos avançar nenhuma, é preciso desmontar a proposição de que não há alternativas para poder começar a procurá-las.”

Se elas não aparecem literalmente em cena, é também porque o Raoul Collectif não terá a leviandade de sugerir que a tarefa que nos espera, se realmente queremos mudar o mundo, será fácil: “Nós sabemos que vai demorar e que vai ser duro; que isto que dura há demasiado tempo não se vai resolver num belo serão, numa eleição democrática ou com a aparição de uma boa pessoa – e temos vontade de confrontar essa dificuldade no espectáculo. A simples tarefa de tirar a TINA do pensamento e de suprimir os reflexos do capitalismo em nós próprios já será um verdadeiro trabalho de Hércules.”

Mas também será um começo, embora eles estejam a ver outro. Aqui mesmo, no lugar onde este sábado voltarão a apresentar Rumor e Alvoradas. Há cada vez mais copos em cima da mesa (mas eles são cinco), e se fosse permitido estaríamos todos a fumar, mas é altura de desligar o gravador, de suspender esta emissão. Acabou a entrevista e agora são Raoul, Raoul, Raoul, Raoul e Raoul a fazer as perguntas: “Como é que vão as coisas em Portugal, vocês não têm uma coligação de esquerda no Governo?”

O Ípsilon viajou a convite do Festival de Almada

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