Festival de Almada: uma visão do teatro europeu, ainda com a troika à perna

Apresentada esta sexta-feira na Casa da Cerca, a 34.ª edição do Festival de Almada faz-se de nomes como Pippo Delbono, Christoph Marthaler, Peeping Tom, Raoul Collectif e uma extensa presença portuguesa. Mas também do lamento pelo papel do Estado na sua situação actual.

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Evangelho, de Pippo Delbono: 15 e 16 de Julho LUCA DEL PIA
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Golem, dos 1927: 12 e 13 de Julho DR
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Uma Ilha Flutuante, de Christoph Marthaler: 16 e 17 de Julho SIMON HALLSTROM
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Gente Comum, de Gianina Carbunariu: 16 de Julho ADI BULBOACA
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Topografia, do Teatro da Cidade: 10 de Julho LEONOR BUESCU

Começou com um murro na mesa. Sem estrondo, mas ainda assim com um murro, um claro protesto de Rodrigo Francisco, director artístico do Festival de Almada, relativamente ao financiamento que o evento e a estrutura que o põe de pé (a Companhia de Teatro de Almada) recebem do Estado. Na conferência de imprensa de apresentação do 34.º Festival de Almada, as primeiras palavras foram, por isso, não para a programação, mas para o facto de a companhia ter actualmente “o mesmo financiamento que em 1997” e de trabalhar “com um orçamento de troika quando a troika já saiu do país há três anos”.

Dispondo para o festival de um financiamento total de 820 mil euros, dos quais 200 mil são assegurados pelo Ministério da Cultura, via Direcção-Geral das Artes – o restante fica a cargo da Câmara de Almada e das parceiras e receitas do festival –, Rodrigo Francisco assume, conforme diz ao PÚBLICO, “um discurso contra-corrente, tendo em conta a euforia que vivemos por via do Europeu [de Futebol], do Festival da Canção e da recuperação económica”. “Este Governo”, volta a apontar o dedo acusador, “está praticamente há dois anos em exercício e ainda não disse aos criadores nem ao país qual é a política teatral que prevê para o futuro": "O único acto visível do ponto de vista teatral deste ministro da Cultura foi ir ao velório de uma companhia [Teatro da Cornucópia] que acabava de extinguir-se.”

Com mais de metade das assinaturas – que dão acesso aos 26 espectáculos de sala – vendidas ainda antes do anúncio público da programação, Rodrigo Francisco apela a uma maior participação do Estado para que “não se assista à degradação do Festival de Almada”. “Não estou disposto a tornar o grande festival que alcançámos no final dos 90 num evento de dimensão local – e o Estado não está a corresponder a esse esforço. Não chega vir alguém às sessões de abertura fazer um discurso bonito, dizer-nos que estamos a fazer um óptimo trabalho e dar-nos os parabéns. É preciso agir em conformidade.”

Marthaler, Delbono, muitos portugueses

Como sempre acontece, o “espectáculo de honra” do Festival de Almada corresponde ao favorito do público na edição anterior. Daí que, este ano, a Casa da Cerca volte a recebe, de 5 a 7 de Julho, a Hedda Gabler de Ibsen, na encenação da norueguesa Juni Dahr. Dahr será também a protagonista do conjunto de aulas O sentido dos mestres, que nos anos anteriores aproximou público e profissionais do pensamento teatral de Luis Miguel Cintra, Peter Stein e Ricardo Pais. Nas tardes de 10 a 13 de Julho, falará sobre a sua experiência no teatro independente, focando em particular a sua relação com a obra de Ibsen. A preferência do público por uma proposta de escala íntima, em vez de uma peça vistosa e complexa, surpreendeu, e acabou por suscitar uma programação que procurou corresponder ao desejo de peças de pequeno formato.

“Fomos ao encontro desse impulso, sem deixar de ter as grandes produções”, ressalva Francisco ao PÚBLICO. “Se o Festival de Almada deixar de ter as principais companhias e os principais encenadores do mundo, deixa de fazer sentido existir como tal.” Os grandes nomes do teatro europeu estarão representados em Uma Ilha Flutuante (Teatro Joaquim Benite, 16 e 17 de Julho), em que Christoph Marthaler se atira ao teatro de Eugène Labiche, ou no Evangelho (Teatro Dona Maria II, 15 e 16 de Julho), resposta (enviesada) de Pippo Delbono ao pedido da mãe para que se debruçasse artisticamente sobre a religião. Pelo D. Maria passará ainda a Bovary de Tiago Rodrigues, que o criador português (e director do Nacional) encenou para o francês Théâtre de la Bastille (6 e 7 de Julho); a sua Perna Esquerda de Tchaikovski passará também por Almada (8 e 9), enquanto no Centro Cultural de Belém os belgas Peeping Tom apresentarão num híbrido de teatro e dança um notável mergulho na esfera da maternidade (Mãe, 10 de Julho).

O Festival de Almada arranca a 4 de Julho, prolongando-se até dia 18, com a abertura assegurada pela companhia Le Fils du Grand Réseau e o espectáculo Apre – Melodrama Burlesco, uma visão muito particular (e algo escatológica) da comédia francesa, numa peça sem palavras mas povoada por uma imensidão de sons. E se recupera/estreia peças de estruturas como Mala Voadora (Moçambique), Companhia João Garcia Miguel (Tempestade), Útero (Operários), Teatro da Garagem (Ela Diz), oferece também um palco ao Novíssimo Teatro Português. É no âmbito desse ciclo que encontraremos criações do Teatro da Cidade (Topografia), do Teatro do Eléctrico (Karl Valentin Kabarett), da Escola Superior de Teatro e Cinema (Primeira Imagem), de Alexandre Tavares e Anouschka Freitas (Por Nascer Uma Puta Não Acaba a Primavera) e de Ricardo Boléo (A Morte do Príncipe). “Andei por espaços mais alternativos à procura de projectos de gente que está disposta a atirar-se para a frente”, diz Rodrigo sobre o ciclo. “Quis integrá-los num festival em que também se encontram o Pippo Delbono e o Christoph Mathaler e em que se confrontarão com um público exigente e com um olhar impiedoso.” E haverá ainda uma História do Cerco de Lisboa levantada a partir do romance de José Saramago por quatro companhias independentes (ACTA, Companhia de Teatro de Almada, Companhia de Teatro de Braga e Teatro dos Aloés).

O Festival de Almada, que este ano homenageia o cenógrafo e figurinista António Lagarto com uma exposição na Escola D. António da Costa, recebe ainda Rumor e Alvorada, em que os belgas Raoul Collectif se atiram à sigla TINA (There Is No Alternative), uma dose dupla romena com textos de Matei Visniec (Ricardo III está proibido) e Gianina Carbunariu (Gente Comum) ou o Golem dos ingleses 1927, peça em torno de uma tecnologia monstruosa. O encerramento, a 18, ficará a cargo dos espanhóis da Voadora, com Um Sonho de Uma Noite de Verão em versão pop e queer.

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