A Europa a caminho da desintegração?

Não é uniformizando tudo, subtraindo aos Estados a soberania política, que reforçaremos a União Europeia.

“Ao criarmos a zona euro, criámos um monstro”
Thomas Piketty

Ao longo da História, muitas foram as tentativas de unificação e de reorganização política do espaço e território europeu. No passado, essas tentativas foram sempre realizadas sob o signo da força e da guerra, desde a Antiguidade até meados do século XX, exceção feita ao sonho medievo da Respublica Christiana, precursora de um certo ideal de paz universal promovida pela Igreja de Roma. Mas foi talvez o horror de largas dezenas de milhões de mortos e de um continente em escombros, terrível legado da Segunda Guerra Mundial, que despoletou nos dirigentes europeus do pós-guerra a percepção da necessidade de unificar pacificamente o nosso espaço territorial e político comum.

O território que atualmente é a União Europeia, uma união económica e política, hoje com 28 Estados-membros mas daqui a dois anos provavelmente só com 27, começou por ser, nos anos 50 do século passado, a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (CECA), uma organização supranacional que juntou a Bélgica, a Holanda e o Luxemburgo (Benelux) à então Alemanha Ocidental, a França e a Itália. Mais tarde, a Comunidade Económica Europeia permitiu, não só o aprofundamento da integração económica entre os seus Estados-membros, como posteriores alargamentos a novos países, como sejam os casos do Reino Unido, da Irlanda, da Dinamarca, da Grécia, de Portugal e de Espanha. Com o Tratado de Maastricht, em 1992, foi oficialmente anunciada a União Europeia, aprofundando-se desde então o livre movimento de produtos, pessoas, serviços e de capital, abrindo-se o caminho para a união monetária, esta última entretanto traduzida na existência de uma moeda comum.

Verdade é que, fruto da ausência de lideranças políticas fortes e esclarecidas, o processo de construção europeia, particularmente nas últimas décadas, foi progressivamente perdendo fulgor, reduzindo a União Europeia a um papel essencialmente reativo do ponto de vista geopolítico. Internamente, a União foi progressivamente capturada por uma máquina burocrática e por uma tecnocracia obcecadamente uniformizadora, com uma expressão quase totalitária, avessa a aceitar que a força da Europa (Ocidental) reside também na diversidade que o aparelho de Bruxelas tanto se esforça por combater.

Cabe, pois, perguntar o que é hoje a União Europeia para os europeus. Um projeto a caminho da desintegração? Uma entidade distante, politicamente menor perante as demais potências mundiais, tendencialmente indiferente aos anseios dos diferentes povos que a constituem, incapaz de iniciativa e de corporizar um projeto mobilizador para os cidadãos dos seus Estados-membros, em suma, uma quimera onde deveria ser uma realidade poderosa, ativa e aglutinadora. Neste sentido, bem andou o nosso Presidente da República português, quando declarou que a Europa "tem de acreditar mais em si própria" e que, "em vez de estar à defesa, tem que estar ao ataque".

O Direito da União Europeia é um bom exemplo de uma deriva regulamentadora, em que, de um lado, corporiza um modelo de forte integração económica e de uniformização de regras jurídicas nacionais, mas, do outro, se revela cada vez mais incapaz de responder à questão de saber que modelo político deve presidir e orientar os destinos dos povos europeus, se é que haverá algum modelo para esse efeito. Na verdade, todo o edifício jurídico-institucional da União Europeia assenta numa fraqueza original, qual seja a dos riquíssimos particularismos que, apesar da tendência globalizadora que abraça também o espaço europeu, constituem o próprio ADN de cada um dos povos que a constituem.

Naturalmente, um modelo federalista, ainda que mitigado por um sistema de checks and balances que limite o poder dos Estados mais poderosos que a formam, nunca deixaria de acabar por resultar na prevalência das suas naturais potências diretoras, à cabeça das quais indiscutivelmente se encontra a Alemanha, enquanto maior produtor e exportador da Europa e terceira maior economia exportadora do mundo. Talvez também porque pressentisse o crescente domínio daquela potência central, o Reino Unido optou pelo “Brexit”, uma alteração fundamental nos equilíbrios geopolíticos do continente, cujo sentido histórico ultrapassa largamente um serôdio assomo nacionalista e um fundado receio na sua própria crescente desintegração demográfica.

Afastado o Reino Unido, no que bem se pode qualificar como uma inversão relativamente às constantes históricas da política externa britânica, caracterizada por um indesmentível intervencionismo nos assuntos continentais desde, pelo menos, a Guerra dos Cem Anos, reforçar-se-á naturalmente o eixo Franco-Alemão, afinal duas economias que, juntas, representam mais de 36% do Produto Interno Bruto dos ainda 28 Estados-membros da União Europeia e que, com a saída da velha Albion, seguramente terão de aumentar as respectivas contribuições para o orçamento comunitário.

No contexto presente, faz sentido uma frente de países meridionais da União Europeia a sul, para mais envolvendo-se nele a França, susceptível de equilibrar a balança dos poderes em desfavor dos países centrais e setentrionais da Europa. Tal tendência tem em vista impedir a fragmentação a prazo da própria União.

Neste cenário, importará, pois, perguntar o que é a Europa? Muito mais do que uma definição geográfica, o nosso continente, no qual se inclui a União Europeia, a Europa define-se, antes de mais, por uma raiz étnica e uma cultura predominantemente comuns, mas também por uma concepção de vida e valores próprios, naturalmente diferentes dos perfilhados por outros grupos étnicos nas restantes partes do mundo.

Verdade é que a própria Europa contém uma tal diversidade linguística, étnica e cultural que deve ser considerada um factor de enriquecimento do projeto em que nos encontramos inseridos. Não reconhecer esta realidade pode ser politicamente correto, mas constitui um erro que pode ter consequências nefastas.

Com efeito, não é uniformizando tudo, subtraindo aos Estados a soberania política, retirando-lhes a autonomia orçamental, elegendo até um governo europeu, que reforçaremos a União Europeia. Esta precisa, como nunca, de se limitar a tratar do essencial no domínio económico e social, reforçar-se como comunidade de interesses, e deixar os povos que a constituem respirar e manter as suas idiossincrasias políticas, religiosas, culturais e sociais.

Acima de tudo, é preciso perceber que o projeto europeu nunca estará terminado, como, por exemplo, o estão os Estados Unidos da América. O que cabe defender é a existência de uma União Europeia na qual coexistam a liberdade, o respeito pelos direitos humanos, a defesa e a segurança comuns. Tal apenas será possível com base num princípio de colaboração entre Estados e não de cedência dos Estados mais fracos às potências mais fortes. Tal seria, a meu ver, a consequência natural de uma solução federalista. E é também por isso que continuo a defender uma Europa como comunidade de Estados politicamente soberanos.

O autor escreve segundo as normas do novo Acordo Ortográfico

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