A banalização do mal

Só líderes carismáticos e destemidos podem enfrentar a vaga de nacionalismos.

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1. Uma eurodeputada espanhola deu-se ao luxo de reagir ao discurso de Jean-Claude Juncker no Parlamento Europeu para apresentar o Livro Branco da Comissão, referindo a sua falta de dinamismo e o seu tom irritado. Noutras circunstâncias, seria uma crítica muito pouco ortodoxa para dizer o mínimo. Naquelas, até faz sentido. Compreende-se que esteja farto, depois das sucessivas lutas inglórias que tem travado para manter-se à tona, a ele e à sua Comissão, num ambiente cada vez mais desfavorável por culpa própria mas, ainda mais, por culpa alheia. O presidente da Comissão, um velho europeísta com décadas de dedicação à Europa, tem culpas no cartório. A sua liderança tem sido errática, entre a tentativa de reanimar o papel da Comissão e a cedência aos governos nacionais (leia-se, em primeiro lugar, Berlim). Tentou constituir um colégio de comissários mais político do que o costume, promovendo pequenos países a postos importantes. Nada disto acabou por resultar. Hoje a Comissão está dividida, quase tanto como o Conselho, com os comissários a funcionarem, como alguém disse recentemente numa conferência em Lisboa, numa lógica quase intergovernamental.

A culpa não é apenas dele. A desvalorização da Comissão já vem de trás, e tem sido vontade expressa de algumas capitais europeias, sobretudo as mais poderosas. O poder de decisão está hoje concentrado no Conselho Europeu e no Eurogrupo, dois órgãos que representam os governos. O formato do road map já tinha falhado em 2015, mesmo envolvendo os presidentes de todas as instituições. Os esforços do presidente da Comissão para encontrar entre as capitais mais importantes um consenso mínimo sobre o futuro revelou-se impossível. Falta avaliar a eficácia da sua decisão. Até agora, as reacções ainda são ambíguas, embora algumas delas sejam significativas. Os dois chefes da diplomacia de Berlim e Paris reagiram imediatamente, elogiando o esforço mas acrescentando ao que vinham: a Europa a duas (ou mais) velocidades. Ainda não explicaram a ninguém (se calhar nem a si próprios) o que é que isto significa. Ou seja, em que domínios (a não ser o da defesa e mesmo assim.) querem avançar mais depressa. No âmbito dos tratados ou fora deles. Sabe-se que Paris e Berlim estão em profundo desacordo sobre o futuro do euro. Para Paris, a UEM tem de ter um governo económico para permitir a convergência em vez de alimentar a divergência económica e social; para Berlim, o que é preciso é aplicar as regras estabelecidas em Maastricht e no Pacto Orçamental. Os dois países terão que estar sempre no centro de qualquer primeira velocidade europeia. Os dois enfrentam eleições em condições muito difíceis (mais na França, evidentemente), que ainda podem alterar muita coisa. Nesta medida, os cenários de Juncker podiam ter alguma utilidade para clarificar as diferentes opções que os europeus têm pela frente. O problema é como envolver os governos e os parlamentos nacionais nesse debate, se eles não quiserem fazê-lo nos termos em que a Comissão propõe.

2. A Europa está a viver um momento daqueles em que tudo ainda pode correr muito mal. O nacionalismo é uma doença altamente contagiosa, como a História nos ensinou, pensávamos que definitivamente. Em muitos países europeus e nos EUA, assistimos a coisas que pensávamos inadmissíveis nas nossas democracias desenvolvidas, mostrando aquilo a que Arendt chamava de banalidade do mal, mesmo que ainda estejamos a anos-luz do mal absoluto. Mas um mal que nos deixa com um sabor amargo na boca. Em Paris a polícia dispersou alguns cidadãos que estavam a fornecer alimentos e outros bem necessários num campo de refugiados. A Maire de Calais, Natacha Bouchart, proibiu qualquer ajuda alimentar aos imigrantes que ainda estão na região, depois do desmantelamento do gigantesco mar de barracas onde milhares se concentravam à espera de uma “boleia” para o Reino Unido. A moda está a pegar.

É fácil descrever a xenofobia e o nacionalismo numa visão estatística. Não chega. É preciso personalizar as suas manifestações, por gente que pensaríamos absolutamente normal. Não dar de comer? Pôr a polícia a vigiar as pessoas normais que fazem coisas normais? Na Alemanha, multiplicam-se à enésima potência os ataques aos campos de refugiados. É o contrário: não são os refugiados que atacam os alemães. No Reino Unido, o “Brexit” alimentou um ambiente mal são em que os imigrantes, incluindo os europeus (deduzo que mais os do Sul), são tratados pelos serviços sociais com uma maldade e uma displicência por vezes insuportável. Já vi reportagens sobre portuguesas a quem são retirados os filhos, sem que se perceba a razão, de uma violência moral arrepiante para quem é mãe. Do lado de lá do Atlântico, esta indiferença moral não está em fase de perder a corrida. Num exclusivo da Reuters, a administração Trump está a ponderar separar as mulheres e as crianças que entrem ilegalmente nos EUA. Podia estar aqui a enumerar estes “pequenos” males, que se estão a banalizar por todo o lado e que vou acumulando na minha secretária, para ver para além das estatísticas e da mera descrição abstracta. O que é que se passa connosco?

3. O futuro da Europa tem a ver com isto tudo. As forças políticas do centro enfrentam um teste fundamental: travar ou não este veneno mortal. Escrevia há dias o site Politico que a Europa precisava de líderes carismáticos e destemidos para enfrentar a vaga de nacionalismo e de populismo e para travar a demagogia fácil contra as elites. O que se está a passar na França é verdadeiramente extraordinário. A menos de dois meses das eleições, ninguém tem certeza de rigorosamente nada. A direita de Os Republicanos ainda pode fazer avançar Alain Juppé, um candidato que já foi primeiro-ministro e que já pagou à sociedade a sua condenação por uso abusivo de dinheiro público para o financiamento do partido. Juppé foi batido por Fillon nas primárias de Novembro passado. Era demasiado frio, demasiado racional, demasiado inteligente para singrar num tempo de emoções simples. O seu programa corresponde ao velho centro-direita chiraquiano. Acredita que o crescimento económico e o emprego são a panaceia para a deriva populista e nacionalista que afecta a direita e a esquerda. Emmanuel Macron é um líder muito mais actual, capaz de entender uma realidade nova onde nem tudo se resume à economia e ao emprego. Não tem a carga das lutas internas fratricidas dos velhos partidos. Acusam-no de não ter um programa devidamente detalhado. Não pode. Ele sabe que o que anunciar depende de factores europeus e internacionais ainda mais do que de factores internos. Que as coisas mudam do dia para a noite.

Tem duas ou três ideias que são fundamentais. O seu discurso europeu não faz cedências: a Europa é o lugar da França e é aí que pode voltar a encontrar o seu futuro. O seu discurso sobre os imigrantes e refugiados não se deixou contagiar pela xenofobia que rende votos a Le Pen e que Fillon abraçou sem estados de alma para tentar salvar a sua candidatura. Só por isto tem todo o mérito. Há, porventura, uma nova geração de líderes de centro-esquerda, como ele ou Matteo Renzi, pragmáticos, moderados, mais ou menos libertos das guerras politicas intestinas dos respectivos partidos, muito mais marcados pelos tempos actuais do que pelas respectivas ideologias. Macron cometeu o “pecado” de dizer que a diferença era entre progressistas e conservadores e não entre a esquerda e a direita. Renzi era um modernizador disposto a atacar as corporações e a reformar o sistema político. Tony Blair escrevia ontem um artigo no Guardian (de leitura recomendável, mesmo para os que o detestam), dizendo que a verdadeira escolha para o centro político, em risco de se esvaziar, é entre a abertura e o fechamento. É esse o grande teste que a Europa enfrenta. Precisa de líderes corajosos, mais do que de líderes com programas e promessas infindáveis. 

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