“Quando as pessoas começam a concordar umas com as outras, fico com medo”

Em J, Howard Jacobson imagina um mundo que aniquilou os judeus e que se dá depois conta de que devia ter poupado alguns para ter a quem odiar. Ao Ípsilon, sugere uma explicação para a persistência do anti-semitismo: os judeus seriam o bode expiatório do ódio dos cristãos ao cristianismo.

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FOTO: NFACTOS / FERNANDO VELUDO

Vencedor do Booker Prize em 2010 com A Questão Finkler, um livro tão hilariante quanto sombrio acerca de um homem que quer ser judeu à viva força, o escritor inglês Howard Jacobson esteve recentemente em Matosinhos, no Festival Literatura em Viagem (LeV), para falar de J, o seu último romance publicado em Portugal, pela Bertrand: uma ficção distópica em que imagina um mundo sem judeus, mas no qual ninguém assume com clareza essa catástrofe ocorrida no passado, sempre referida como O Que Aconteceu, Se Aconteceu. O pai de Kevern, o protagonista, brinca com ele a um jogo estranho: quando uma palavra começa por “J”, leva dois dedos aos lábios.

Nesta conversa com o Ípsilon, Jacobson assume que teve de controlar a sua veia cómica em J, para não dissipar demasiado o negrume do livro. E não deve ter sido fácil, porque é mesmo um humorista nato. Por escrito e ao vivo, como demonstrou na sessão do LeV, onde conversou com Pedro Vieira e Tito Couto.

Jacobson explicou ao público, por exemplo, o motivo que levava todos os seus vizinhos judeus em Manchester, quando era rapaz, a apoiar o Manchester City, um clube que “não ganhava nada, enquanto o United vencia campeonatos europeus”. É que “o judeu gosta de sair do estádio com algo de que se queixar”, diz. “Que satisfação pode haver em chegar-se a casa e dizer-se à mulher: ‘Ganhámos!’?. Mas se perdemos, podemos culpar os desuses ou o destino, e sobretudo manter viva a esperança no próximo jogo… a esperança de que voltemos a perder.”

Já é menos claro que o escritor estivesse apenas a tentar ter graça quando contou como se irrita com os seus amigos que dão as histórias de Harry Potter a ler aos filhos, e ainda mais quando estes argumentam que não importa que os livros de Rowling sejam maus, “porque os miúdos começam por ali e depois lêem coisas melhores”. A sua experiência diz-lhe o contrário: “Se 1% dos leitores de Harry Potter viessem a ler bons romances, eu seria um homem rico”, garante.

Aos 73 anos, Jacobson começa mesmo a suspeitar de que os seus leitores podem ser uma raça em vias de extinção. “Sou um romancista publicado há 35 anos, e talvez haja alguma coisa de errado com o que escrevo, mas a sensação que tenho é que à medida que me vou tornando mais conhecido, tenho cada vez menos leitores”, garante. “Quando vou a festivais literários, e ao entrar na sala vejo uma pilha de livros meus, já tenho reparado que à saída a pilha está mais alta: as pessoas aproveitam para os devolver”.

Após ter provado em 2010, com A Questão Finkler, que um romance cómico podia ganhar o Booker Prize, não parecia óbvio que o seu passo seguinte fosse escrever uma obra tão negra e distópica como J.
Não foi exactamente o passo seguinte, porque entre os dois livros há um romance satírico sobre o mundo académico, Zoo Time (2012), que não foi publicado em Portugal. Mas é verdade que já estava meio escrito quando ganhei o Booker. Normalmente tento começar um livro mal acabo outro, gosto de manter as coisas a andar. O que acontece é que um romance nem sempre reflecte o que nos está a inquietar no momento: às vezes não tratamos um tema quando ele nos aparece, e mais tarde dizemos. “Sim, isto interessou-me naquela ocasião e agora é uma boa altura para recuperar o assunto”. 

J também chegou aos finalistas do Booker, mas os jurados teriam de ter algum fair play para dar o prémio a um romance onde um professor de Artes Visuais Benignas, eufemismo para um censor encarregado de garantir que a arte se mantém convenientemente anódina, reconhece que “a cultura dos prémios” faz o trabalho por ele.
Eles têm fair play, acho que a razão foi outra. Depois de ter publicado J, as pessoas diziam-me: “Tem muitas ideias, não é?”. Como se o papel de um romance fosse ocultar as suas ideias. Eu gosto de romances cheios de ideias, em que o romancista pára e vem falar contigo. Claro que nas aulas de escrita criativa estão sempre a dizer-te “mostra, não digas”, mas creio que se deve fazer ambas as coisas, desde que se se saiba contar. Veja-se o Tolstói. [Hesita um segundo e acrescenta] Tudo bem, talvez preferisses que ele contasse um bocadinho menos…

No seu romance parece haver a deliberação de não mostrar muito. Pensando no pouco que nos é efectivamente descrito desse admirável mundo novo, ou da catástrofe que o originou, pergunto-me se o J rasurado na capa do livro alude apenas aos judeus ausentes, ou poderá ser também uma espécie de lacónica arte poética.
Com a ideia do J rasurado quis apenas dar uma versão um pouco mais intensa do que foi a minha infância. O meu pai não punha dois dedos à frente da boca, mas na Manchester dos anos 40 e 50, onde cresci, não se falava do judaísmo. E quando comecei a escrever romances acerca do judaísmo – para minha surpresa, porque nunca pensei que esse viesse a ser o meu tema –, os meus pais perguntaram-me se seria boa ideia. Mas gostava de estar com a cabeça mais fresca para responder à sua questão…

Há uma cena que pode simbolizar o que quis dizer: aquela em que a bibliotecária observa o protagonista, Kevern, e se convence de que ele está literalmente a ler as páginas que os censores arrancaram do livro, as páginas que não estão lá.
Sim, essa é uma metáfora poderosa. Ao longo do livro aparecem umas páginas soltas, que quis que funcionassem como quadros pendurados nas paredes do romance, e que são na verdade, embora isso nunca seja dito, descrições reais de pogroms, memórias deixadas por pessoas que os testemunharam. A questão em J é que não se trata apenas de esquecer o passado. Se toda a questão de lembrar ou esquecer já é complexa perante uma catástrofe admitida, é-o ainda mais quando essa catástrofe não é admitida. Querem que se saiba que aconteceu, porque é importante que se saiba, mas não podem dizer o que aconteceu.

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FOTO: NFACTOS / FERNANDO VELUDO

Já que falámos da bibliotecária, a voluptuosa Rozenwyn, observo que a cobriu com o pudico apelido Feigenblatt [folha de figueira], que chamou Eugene a um polícia que se propõe melhorar a humanidade dispensando certas pessoas, para já não falar do cão Rotschild ou do tal professor de Artes Visuais Benignas, que talvez deva os seus nomes próprios – Edward Everett – a um actor da golden age de Hollywood. Viu-se compelido, neste romance, a reprimir o seu talento cómico e achou que se podia vingar nos nomes das personagens?
No livro toda a gente adopta apelidos judeus, o que em parte é uma piada pelo facto de muitos judeus terem mudado os seus nomes por acharem que assim ficavam mais seguros. Acho que não preciso de explicar que é uma piada bastante cruel. Mas tem razão, deu-me gozo inventar os nomes, e também é verdade que controlei bastante o humor. Há um lado de comédia negra, sobretudo à volta da personagem do polícia, mas tive de me conter.

Logo nas primeiras páginas de J, os seus talentos literários saltam à vista, da capacidade de imaginar correlativos eficazes para sugerir sentimentos muito precisos, como Ailinn experimentando “uma sensação eclesiástica furtiva” ao entrar em casa de Kevern, ao dom de condensar um todo complexo na brevidade de uma expressão feliz, como na afirmação de que Kroplik “era mais portão do que porteiro”. Acha que estas qualidades são mais susceptíveis de ser notadas num livro como este do que num romance cómico?
A questão da comédia é algo em que penso sempre. Quão cómico me vou permitir ser? Sinto hoje uma certa desconfiança, uma desvalorização da comédia. As pessoas acham que me esforço demasiado para ter piada, e eu respondo-lhes que só quem não tem um talento cómico natural é que pensa isso. Não me esforço nada. Mas é tão difícil escrever romances cómicos como outra coisa qualquer. Por outro lado, o mundo em que vivemos é muito circunspecto. Enfrentamos muitos agelastes [alusão ao neologismo de Rabelais para designar os que nunca riem], gente que não percebe as piadas, que não gosta de as ver nos livros, e eu não quero ter a cabeça constantemente ocupada com a distracção dessa luta. E se em J me contive mais, é também porque há no livro um certo pathos que se poderia perder com um excesso de comédia. Quando era um jovem escritor, tornei-me muito bom nessa técnica de tirar o tapete ao leitor quando ele está a ponto de se comover. Sei como se faz. Mas a comédia, às vezes, pode mesmo ser um mau hábito.

No início, o leitor de J pode chegar a admitir que o mundo descrito no livro seja, não o efeito de um acontecimento catastrófico, mas o resultado natural de uma mentalidade de rebanho intensificada pelas redes sociais, conjectura que, em rigor, até poderia dispensar a questão do judaísmo. Chamou a um capítulo Twitternacht, numa dupla alusão ao Twitter e à Kristallnacht nazi. Acha que as redes sociais podem ajudar a criar condições para um novo Holocausto?
Acho. Acho mesmo. São agentes de uniformização. E quando as pessoas começam a concordar umas com as outras, fico com medo. Também é verdade que este romance tem implícita uma versão alternativa que não precisaria do Holocausto. Mas a questão do judaísmo dá-lhe uma força particular. O romance representa essas pessoas “J”, fossem elas quem fossem, como gente retorcida, complicada, que não teria permitido essa transição suave para o optimismo e a crença partilhada, que são o corolário natural das redes sociais. E por isso mesmo poderiam ter sido os nossos salvadores. Claro que não sei se isso seria verdade: já há bastantes judeus na linha da frente do Facebook e afins. Mas na minha cabeça, e no livro, os judeus são os representantes falhados do cepticismo e de todas essas outras perversidades que as pessoas civilizadas apreciam. 

Sem querer revelar demasiado do livro, digamos que J sugere que se todos os judeus desaparecessem, o mundo não encontraria outro povo a quem odiar tão eficazmente. Acredita mesmo nisso?
Acredito, e acho que tem a ver com as origens judaicas do cristianismo. Julgo que Freud foi dos primeiros a sugerir que uma das raízes do anti-semitismo é o ódio dos cristãos ao cristianismo. E Nietzsche tem ensaios admiráveis em que explica que o que o judaísmo trouxe ao mundo foi o cristianismo. Claro que se poderia escolher os chineses, ou outros, como bodes expiatórios, mas o universo cristão e o judaísmo gravitam juntos, e sempre gravitarão.

Disse ao público do LeV que se ouvisse suficientemente bem, ouviria Moisés. Acha que os povos têm uma espécie de memória genética, e que os judeus teriam um acesso privilegiado à sua?
Não acho que seja genético. É cultural. Não é a língua, porque a minha língua é o inglês e o meu hebraico é inexistente. Somos contadores de histórias, e contamo-las de determinada maneira, com um certo equilíbrio de humor e amargura, e como se estivéssemos a conversar com gente que viveu há muito tempo. No meu último romance, Shylock Is My Name, que sairá aqui em Fevereiro, Shylock está vivo, e há uma personagem que diz: “Claro que está, quando é que ele aqui não esteve?”. O que é interessante em Shylock é que não é a criação de um judeu. É uma história anti-judaica que atravessou os tempos, chegou a Shakespeare, e nas mãos dele tornou-se algo muito mais subtil do que isso. Shylock não tem uma origem judaica, mas como se enraíza no receio aos judeus, e este se enraíza em coisas que os próprios judeus disseram, tornou-se hoje, de forma estranha, parte integrante da literatura judaica. Um dos prazeres que me deu o livro foi manter a rolar esta história acerca de judeus.

Há uma passagem de J em que Kevern menoriza a sua profissão de fabricante de “colheres de amor” em madeira, e a bibliotecária replica: “Lá estás tu… o simples carpinteiro. É essa a arrogância de que desconfiam”. A alusão a Jesus Cristo é bastante óbvia. Quis sugerir que o seu protagonista nasceu para se sacrificar pela salvação da humanidade?
Absolutamente, foi isso mesmo que quis que os leitores pensassem. Toda essa ironia amarga está no livro: a ironia do judaísmo a criar uma vez mais o cristianismo.

Desculpe o salto: tem opiniões firmes sobre o referendo ao “Brexit”?
Não tenho opiniões interessantes, tenho só as paixões de um homem normal. Acho que vamos ficar. A inércia é uma força importante, e eu confio nela, é mais segura do que a volatilidade. Claro que a inércia nem sempre tem razão, mas neste caso creio que tem. E as poucas figuras públicas que falam a favor da saída não me merecem nenhuma credibilidade intelectual, com a excepção do político conservador Michael Gove [actual ministro da Justiça], de quem me custa discordar.

E como vê o fenómeno Donald Trump nos Estados Unidos?
Achei que ele não teria hipótese, mas agora penso que poder ter, e isso é assustador. Não sou um esquerdista, e nem são tanto as políticas que me preocupam, porque ele não vai construir o tal muro nem manter os muçulmanos fora dos Estados Unidos. Uma coisa é a campanha, outra a governação, que é sempre mais anódina. Mas é tão degradante pensar que um pateta como ele pode ser presidente dos EUA. Muita gente diz que ele não é pateta nenhum, que sabe muito bem o que está a fazer, mas ele é mesmo um pateta, não há nada a acrescentar à frase. É um atrasado intelectual, e isso deprime-me e perturba-me.

A recente eleição do muçulmano Sadiq Khan como presidente da Câmara de Londres é uma boa notícia?
É cedo para dizer. Estou convencido de que ele tem bons instintos.

Voltando a J: no livro, a principal característica que a ausência de judeus retiraria ao mundo parece ser a discussão, a argumentação, a crítica. Para si, o que mais exemplarmente define o judeu é isso, alguém que mantém acesa a discussão, com os outros e consigo próprio?
É essa a nossa grande virtude, mesmo se pode tornar-nos poucos sólidos. E vem desde sempre. Aqui está o texto, e o comentário do texto, e o comentário do comentário… Toda a alegria está aí, no debate entre os críticos.

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