Uma grande família feliz

O mais recente romance de Howard Jacobson não faz rir nem chorar. Tem um efeito menos popular: faz pensar

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À razão utópica do “fim da História”, Howard Jacobson opõe a potência de um pesadelo repetível JENNY DE YONG

Ainda que residual, alguma utilidade haverá nos prémios literários.

Não fora o Man Booker Prize de 2010 atribuído ao livro A Questão Finkler (Porto Editora, 2011), e o escritor britânico Howard Jacobson (n. 1942) continuaria provavelmente inédito em Portugal. Não obstante já se ter tornado um lugar-comum mediático compará-lo ao norte-americano Philip Roth (aparentemente muito apreciado por cá). Suponho que tal comparação se não deva apenas ao facto de ambos os escritores compartilharem a língua inglesa e a ascendência judaica. Jacobson, aliás, já disse que preferia que o tratassem como “uma Jane Austen judia”, no que talvez seja uma típica manifestação do famoso humor judaico. J é a mais recente das 13 obras de ficção até agora publicadas por Jacobson. Foi também à final do Booker no ano passado. Não ganhou, mas merecia ter ganhado. Não faz rir. Nem chorar. Sombrio e superiormente escrito, tem um efeito menos popular: faz-nos pensar.

Comecemos pela letra do título (J de Jacobson? J de Jenny, a quem é dedicado? J de Judaísmo?), que surge rasurada por dois traços horizontais (=) assinalando graficamente (e este trocadilho visual talvez seja a única piada pueril do livro) o gesto defensivo que o pai e o avô do protagonista, Kevern Cohen, faziam sempre que a pronunciavam, levando dois dedos aos lábios, “como um vagabundo a puxar uma beata que tivesse encontrado num caixote do lixo”. A infância de Kevern foi guiada por outros avisos e precauções proferidos “numa língua semi-estrangeira”, solenemente: “Não sabes, não viste, não ouviste falar. Quando os professores faziam perguntas, a sua mão era a última a levantar-se: dizia que não sabia, que não tinha visto, que não tinha ouvido falar. Havia segurança na ignorância.” No início do romance — que se situa num futuro não muito distante e num cenário inquietantemente familiar, que bem poderá ser a Inglaterra, talvez a Cornualha… —, Kevern tem 40 anos, é um solitário e introspectivo artesão e habita numa aldeia costeira de um país a cuja capital o seu pai chamava Necrópole, uma cidade onde “havia um florescente mercado negro de recordações de tempos melhores — até mesmo, poder-se-ia dizer, da própria memória”. Acaba de iniciar uma relação amorosa com Ailinn Solomons, uma mulher com praticamente metade da idade dele, que desenha e pinta, que veio do “frio arquipélago do Norte”, onde foi criada num orfanato católico (não por acaso, como se verá mais tarde), e cujos pais adoptivos escolheram “como quem escolhe uma laranja”. Ailinn “era uma pessoa artística. Mais uma razão para pensar que tinha sido vítima de abusos”. Mas a história de amor de Kevern e Ailinn é apenas o eixo em torno do qual se articulam os diferentes materiais que complexificam e densificam extremamente este magnífico e heteróclito romance de Jacobson: diferentes vozes narrativas, diferentes tempos e lugares, diferentes géneros romanescos (o policial, por exemplo, que a determinada altura é brilhantemente parodiado), diferentes temas e problemas.

O mundo do nosso romântico par sobreviveu a uma catástrofe histórica (não, não foi uma catástrofe natural), que terá ocorrido umas décadas antes e que é sempre e unicamente referida em maiúsculas como “AQUILO QUE ACONTECEU, SE É QUE ACONTECEU”. No admirável mundo novo que daí surgiu, todos os topónimos foram mudados e todos os apelidos adquiriram um reconhecível sabor judaico (note-se que nem esta última palavra nem nenhuma outra do seu campo lexical são alguma vez referidas no livro). A lei deixara de ser escrita, havendo agora uma “submissão voluntária”. Com vantagens: “Uma sociedade aquiescente implicava que todas as suas partes consentiam com gratidão — a gratidão dos que foram poupados pela providência — ao princípio da aptidão do grupo” (p. 24). Nesse admirável mundo, ética e politicamente novo, “nada era propriamente proibido”: por exemplo, a História, que passara a ser encarada como “uma maneira de sobrestimar a passado”, era apenas “desincentivada” e “o gosto popular fizera aquilo que os decretos e as proibições nunca poderiam ter feito: tal como, no respeitante a livros, as pessoas preferiam autobiografias de coitadinhos que se tornam ricalhaços, livros de culinária e romances cor-de-rosa, no que dizia respeito à música, optavam por baladas” (p. 23). Esquecer, sorrir e perdoar, pedir desculpa, sobretudo isto, pedir desculpa, até a contrição se tornar um fim em si mesmo, um formalismo, uma futilidade: eis o “espírito da mudança”, a bondosa “hipnose moral”, a “amnistia universal, que dispensava de uma vez por todas as distinções e invídias entre os que fazem e os que deixam fazer”, as diferenças entre vítimas e carrascos, porque “o tempo tem de se fechar sobre os acontecimentos e não há melhor maneira de o assegurar do que juntar toda a gente retroactivamente” (p. 98). Conclui um certo professor de novíssimas “artes benignas”: “Agora somos todos uma grande família feliz.” E no entanto, a história não acabará aqui. Nem a História.

O autor propõe como “argumento” deste romance friamente distópico uma fábula sobre um lobo e uma tarântula que discutem qual deles será o mais temível caçador. Ganha o lobo, cuja eficácia o deixa sem outra alternativa que não a de ter de vir a comer-se a si próprio. Remata Jacobson que há que “deixar sempre um bocadinho no prato”. E esta sarcástica “moral da história” pode conjugar-se com a recomendação que o bisavô de Ailinn fazia à filha: “Não te deixes embalar por uma sensação de segurança falsa. Não te esqueças da Alegoria da Rã” (p. 218). É a conhecida história daquela rã que sobrevive quando atirada para uma panela com água a ferver, saltando instintivamente de lá para fora, mas que se deixa cozer alegremente quando é atirada para uma panela de água tépida cuja temperatura vai sendo gradualmente aumentada. Aliás, as vinhetas que surgem embrechadas na narração principal, e que são atribuíveis a este avô da nossa heroína, são da aura do presságio e da profecia. O que foi preciso para que “aquilo que aconteceu, se é que aconteceu”, tivesse acontecido? E o que será preciso para que volte a acontecer? “O mesmo de sempre. […] instabilidade económica, um nacionalismo inflamado, uma populaça desempregada e maleável com uma pronunciada propensão para adorar heróis, um governo supino, tedium vitae, uma elite farisaica e mal informada [...]. E ainda o fanatismo. Nunca esquecer o fanatismo — essa tocha para as paixões facilmente inflamadas tanto dos cultos como dos incultos.” Nada que tenha que ver com o nosso tempo, portanto. Ou, como diria o avô de Ailinn se tivesse escrito a carta que não chegou a escrever à filha: “Os grandes genocídios do nosso passado recente […] têm-nos levado a pensar que nada dessa enormidade de loucura pode acontecer de novo — em lado nenhum, muito menos aqui. […] Mas baixe-se a ordem dos horrores e, respondendo a uma ambição muito mais modesta, ainda se consegue arquitectar uma carnificina […], uma matança de proporções mais modestas” (p. 301). Não aqui, é claro.

À razão utópica do “fim da História”, e a uma ideologia instrumental, cínica e piedosa, que é capaz de conceber a humanidade como “uma grande família feliz”, opõe Jacobson a potência de um pesadelo repetível. Não como farsa, mas sempre como tragédia. O resto na beira do prato. O ovo da serpente.

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