Filo-finklerismo primário

"A Questão Finkler" vai reduzindo todas as personagens à dimensão de estereótipos, realçando apenas as características mais protuberantes de um arquétipo "Judeu"

Num episódio clássico da série com o mesmo nome, Seinfeld suspeita que um dentista seu conhecido se converteu ao judaísmo apenas para poder aceder com legitimidade ao humor judaico. Ao confessar (ou "confessar") a sua indignação a um padre católico, este pergunta-lhe: "E isso ofende-o como judeu?". "Não, ofende-me como comediante".

A sequência poderia servir de epígrafe ao mais recente romance de Howard Jacobson (Man Booker Prize 2010), que explora ansiedades semelhantes sobre os emblemas apropriáveis de uma cultura estranha. O protagonista de "A Questão Finkler", Julian Treslove, é um gentio que procura converter-se ao judaísmo não só pelas piadas, mas pela Tragédia.

Tecnicamente, aliás, Treslove não pretende converter-se a uma religião, mas a uma cultura; o que ele quer não é tornar-se judeu (no sentido de deixar de ser protestante), mas sim ter sido sempre judeu (no sentido de nunca ter sido apenas Treslove). A necessidade de preencher o vazio com as cores berrantes de uma cultura assimilada é explicada nos primeiros capítulos do romance como um sintoma de vácuo identitário.

Treslove é uma tabula rasa, uma identidade informe, desesperadamente à procura de um molde. Na Universidade, acumulara cadeiras tão diversas que ao terminar o curso acha-se "detentor de um diploma tão vago que a única coisa que podia fazer era aceitar um estágio para licenciados na BBC". Conta no seu currículo emocional com dois casamentos e dois filhos - Alfredo e Rodolfo - que mal consegue distinguir. Depois de meia dúzia de ensaios vocacionais inconclusivos, ganha agora a vida como sósia de celebridades: não por se parecer especificamente com uma, mas por se parecer genericamente com várias.

O seu filosemitismo remonta aos tempos de estudante e ao seu primeiro amigo judeu, Sam Finkler, hoje um filósofo popular, autor de livros como "O Existencialista na Cozinha" e "O Guia Resumido do Estoicismo Doméstico". Finkler substitui-se na mente de Treslove à ideia pré-determinada de um judeu: "Se todos os judeus eram assim, pensou Treslove, então Finkler (...) era uma designação melhor para eles que 'judeu'. Assim, isto era o que lhes chamava em privado - finklers. (...) No próprio instante em que se falasse da Questão Finkleraica, digamos, ou da Conspiração dos Finklereus, sugavam-se as toxinas ao assunto".

Treslove, como é evidente, essencializou o seu fascínio por Finkler, transformando-o num estereótipo alternativo - e imune à volatilidade do próprio Finkler, que o romance também submete à sua derrapagem identitária. O que Jacobson parece sugerir é que, tal como o antisemitismo, o filosemitismo é um preconceito: um atavismo proveniente das mesmas bases frívolas e irracionais.O filofinklerismo de Treslove ganha densidade dramática através de dois incidentes, que servem de catalizadores para a segunda metade do livro. O primeiro é a morte das respectivas esposas de Finkler e Libor Sevcik (o terceiro membro do círculo de amigos). Treslove, que sempre sentira uma atracção mórbida por mulheres condenadas, com a aura da "doença terminal", fica obcecado pela mágoa alheia: "Como se continua a viver sabendo que nunca - mas nunca, nunca mesmo - vamos voltar a ver a pessoa que amamos? Como se sobrevive uma só hora, um só minuto, um só segundo a esse conhecimento? Como nos mantemos inteiros?" O segundo incidente ocorre depois de um jantar de luto: Treslove é vítima de um assalto, onde, depois de lhe esvaziar os bolsos, a assantante balbucia uma frase indistinta que, após alguns dias de recapitulação tendenciosa, é interpretada como um insulto antisemita: "Seu judeu!".

Confrontado com um ataque inexistente a uma identidade inexistente, Treslove decide, para todos os efeitos, tornar-se alguém que merecesse aquela ofensa, e começa um burlesco processo de conversão, encarnando um judaísmo desprovido de conteúdo genético ou espiritual, um mero compêndio de memes culturais, de Maimonides a Woody Allen.

Refém das percepções do seu protagonista, "A Questão Finkler" vai reduzindo todas as personagens à dimensão de estereótipos, realçando apenas as características mais protuberantes de um arquétipo "Judeu"; uma a uma, todas tombam em sub-categorias familiares. Pode ser um método para testar um dos argumentos de Jacobson - a ideia de que, independentemente da bagagem hereditária, qualquer pessoa que queira definir uma identidade à força se arrisca a defini-la pelo atalho mais visível, que é enclausurar-se numa tipologia. Mas, do ponto de vista técnico, isto é uma forma de batota: uma licença constante para o recurso ao estereótipo. Ao transformar toda a gente em caricaturas por motivos estruturais, o autor exibe um alibi perante o leitor que o acusa de transformar toda a gente em caricaturas por falta de talento.O problema agrava-se no último terço do livro, quando o elenco é arregimentado para travar batalhas culturais transplantadas do mundo real. Finkler junta-se a um grupo de "Judeus enVERgonhados", semi-celebridades dedicadas a protestos anti-sionistas. Apesar de alguma sátira pertinente e bem executada, essas secções resvalam para a farsa à clef - caricaturando a golpes de trincha que parecem reciclados de artigos de opinião algumas personalidades (Stephen Fry, Ken Loach, Jacqueline Rose) e escaramuças mediáticas britânicas já a meio caminho do esquecimento.

Outro problema técnico é a fidelidade de Jacobson a um sub-género específico de comédia que nem sempre é compatível com a forma literária que escolheu. Uma comédia que acumula alguns efeitos locais bem conseguidos (há observações inspiradas em número suficiente para uma hora de "stand up") numa escalada gradual de exageros que acabam por criar ângulos incómodos. As comparações com Philip Roth talvez já cansem Jacobson (que tentou contra-atacar o rótulo jornalístico de "Philip Roth inglês" com o de "Jane Austen judeu"), mas "A Questão Finkler" exige uma comparação parcial. A criação cómica dos "Judeus enVERgonhados" evoca os "Antisemitas Anónimos" de "Operação Shylock", tal como a longa discussão filosófica sobre a prática da circuncisão evoca uma discussão muito semelhante em "The Counterlife". Nesses romances, Roth evade-se à armadilha da incompatibilidade sublimando todo o seu arsenal cómico num único apetrecho: o monólogo exasperado. "A Questão Finkler" é um artefacto literário diferente, cuja forma evoca um outro tipo de romance, a meditação interiorizada, discursiva e digressiva, que almeja a uma caracterização serena e realista mais difícil de compatibilizar com desvarios burlescos e exageros retóricos. Também aqui, Jacobson se resguardou com um sólido alibi estrutural (a comédia judaica do livro é uma ideia estereotipada de comédia judaica, etc.), mas quando ela chega à página já esgotada por precedentes, o alibi começa a parecer um ataque preventivo; como o dentista de Seinfeld, o humor em segunda mão pode não ofender gentios ou judeus, mas arrisca-se a ofender apreciadores de comédia.

"A Questão Finkler" é melhor na micro-gestão de estilo e técnica do que na forma como convoca e organiza os seus grandes temas. A dada altura, Treslove observa uma mulher na cozinha e pensa que "aquilo que [ela] fazia não era tanto cozinhar como maltratar os ingredientes, golpeando-os e aplicando-lhes um tratamento furioso até saberem a alguma coisa". O que Jacobson fez foi mais ou menos o mesmo: não tanto escrever um romance como golpear furiosamente um reportório de elementos literários até estes saberem a alguma coisa (alguma coisa kosher). E quando isto acontece, é mais fácil admirar o cozinheiro do que saborear a refeição.

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