Governação e castas

Habituem-se a uma nova Nova Esquerda, que talvez esteja a começar a mudança da Europa.

“Finalmente caiu o muro de Berlim em Portugal”, dizia-se por aí, perante o acordo de esquerda, do PS, PC e BE. Mas afinal tinha caído só de um lado. E onde caem muros,  levantam-se outros, como acontece actualmente na Hungria.

O extraordinário acordo da esquerda, consubstanciado no projecto de um Governo que alivie os anos de ideologia e prática da desigualdade, só pode ser uma alegria para os 62% de eleitores que votaram na mudança, apesar do medo que soprava do outro lado, sob a forma do discurso repetitivo da “bancarrota”, da governação Sócrates (da governação pois claro, nada de falar em questões judiciais), da promessa de estabilidade. Os conselheiros técnicos da campanha “PaF”, que ensaiaram a repetição destas expressões muito antes do período eleitoral, não conseguiram no entanto convencer os eleitores que correspondem a uma maioria absoluta dos deputados eleitos.

É então perante este acordo, inesperado pela direita, que se desenvolvem as mais ferozes e arcaicas reacções. Bem podia o Presidente da República espremer-se reflectindo todo o dia 5 de Outubro, ele que já tinha posto “todas as hipóteses” antes das eleições. Faltava esta.

E faltava porque a direita sempre pensou que os partidos à esquerda estavam ali no Parlamento para enfeitar e para demonstrar que havia democracia. Então até os deixavam falar! E quantas vezes disseram que “são muito necessários à nossa democracia”! Diga-se de passagem que os partidos do protesto se colocaram muito como uma fortaleza ideológica. Mas quem estivesse atento aos discursos eleitorais podia ter antevisto esta solução. António Costa disse reiteradamente que não deixaria passar no Parlamento um governo que fosse a continuação do anterior. Muitos dos cegos à direita e os pouco confiantes à esquerda não acreditavam no que ouviam. E quem escutasse o discurso do PC ao longo da campanha e descortinasse a nova voz do Bloco, podia antever. Além do mais, todos estes partidos andaram na rua, como eu andei. E ouviram o que eu ouvi: para além da simpatia, o pedido de unidade à esquerda e o apelo “corram de lá com eles”. Os políticos não podem ser insensíveis ao murmúrio da rua e também por isso e por aquilo que eles próprios sentem, os encontros entre organizações de esquerda foram mais do que gestos de cortesia.

A direita do “arco da governação”, tão bem instalada no sistema do “ora agora mandas tu, ora agora mando eu”, tirou então as unhas de fora e perdeu todo o verniz. As caras acabrunhadas ficam para a nossa memória, registadas e imperdíveis que são as imagens.

Mas as palavras… As palavras revelam todo o sentido de casta, de classe intocável. “Golpe de Estado”, “obscenidade”, “usurpação” “ridículo” e outros impropérios. Os comentadores indignados e arrogantes. O pivô da televisão a entrevistar Carlos César resultando num verdadeiro debate em que o entrevistador (Rodrigo Guedes de Carvalho) se transforma em verdadeiro opositor agressivo e arrogante, interrompendo, provocando. Um exemplo entre muitos.

E para finalizar, esse discurso do Presidente da República, que nem se suja a dizer os nomes dos partidos (casta é casta), os inomináveis que deverão ficar eternamente na ala dos intocáveis, a menos que venham a concordar com o que ele pensa. Ou seja a blindagem dos acordos europeus, a submissão a estruturas tão pouco democráticas como o Eurogrupo, são eternas e jamais poderá governar algum partido que se lhes oponha. Merkel, Mariano Rajoy (“não me está a agradar nada o que se está a passar em Portugal”), Passos Coelho, Cavaco Silva, é que são a Europa. Os outros cidadãos que pensam de forma diferente não são europeístas. Ou seja a ideologia da desigualdade ficará para sempre (“pobres sempre houve e haverá”, não é?).

A manobra anti-decência que é o apelo aos votos dissidentes do PS não pode encontrar acolhimento em deputados que, tendo sido apoiantes de Seguro, muito antes disso foram intervenientes no Congresso Democrático das Alternativas, que dois anos antes e com milhares de pessoas abria a porta da unidade de esquerda.

E quanto a acordos e coligações, fazia-lhes bem ter visto alguns episódios do “Borgen” no segundo canal da RTP ao domingo à noite. Teriam aprendido que num país avançado como a Dinamarca os acordos entre partidos não se fazem na base de ideologias mas sim de pontos muito precisos de programa: imigração, protecção do ambiente, impostos sobre o capital financeiro.

Só por lapso António Barreto pode ter dito que governos com a presença dos comunistas acabam em repressão. Paulo Pena esclareceu, de forma exaustiva, neste jornal PÚBLICO, quais são os factos e quantos governos já se formaram com os comunistas por essa Europa fora. Convém não confundir aquilo que foram os governos dos países do Pacto de Varsóvia com os governos de coligação em democracia.

Afinal, a nossa direita, que tanto fala nos horrores do Processo Revolucionário de 74/75, que deve ter sido o processo de mudança mais pacífico do mundo, regressa, ela sim, há mais de quarenta anos atrás.

E antecipa, com horror, a entrada dos “sans-coulottes” no Governo. Eu sei, historiadores sábios, que na revolução francesa eles entraram foi na Assembleia. Mas já passaram mais de duzentos anos. E habituem-se a uma nova Nova Esquerda, que talvez esteja a começar a mudança da Europa.

Médica, Professora da Faculdade de Medicina de Lisboa

Sugerir correcção
Ler 10 comentários