A necessidade de uma estratégia europeia para a guerra da Síria

Se a União Europeia não consegue convencer os europeus que estão melhor, e mais protegidos, do que só com os Estados soberanos, então assistiremos a uma erosão da sua legitimidade e à reversão do processo de integração.

1. A União Europeia está a tornar-se no grande perdedor internacional da guerra da Síria. Ao longo dos últimos tempos tem vindo a sofrer significativos danos colaterais. Estes são, cada vez mais, visíveis e preocupantes.

Primeiro, foi o recrutamento, em países europeus, de combatentes para o Estado Islâmico (Daesh). Pelo seu radicalismo e propensão para a violência colocam um óbvio problema de segurança interna, especialmente após seu regresso a território europeu. Mais recentemente, surgiu a intensa vaga de refugiados que aflui, sem cessar, aos Estados do sudeste europeu, com o objectivo de chegar à Alemanha e aos Estados ricos do Norte. O contraste da realidade actual não podia ser maior com o entusiasmo ingénuo pela Primavera Árabe de 2011. Anunciava-se, então, uma nova vaga da democracia liberal-pluralista no Sul do Mediterrâneo e Médio Oriente. No caso da Síria, o derrube de regime autoritário e Bashar al-Assad levaria a uma sociedade livre, democrática e respeitadora dos Direitos Humanos. Nada de mais infundado se poderia imaginar. Bashard al-Assad continua em Damasco. A barbárie do Daesh consegue ultrapassar as inúmeras atrocidades já cometidas pelos defensores regime e outros grupos opositores da rebelião armada. Às portas da Europa está uma imparável vaga de refugiados. A Rússia, aproveitando uma União Europeia dividida e absorvida por questões internas — a dupla crise da Zona Euro e dos refugiados —, volta a emergir como potência de primeiro plano no Médio Oriente. Iniciou o reforço da presença militar na Síria. Propôs, na Assembleia Geral das Nações Unidas, uma grande coligação internacional contra o Daesh. Assume-se, agora, como mediador incontornável numa solução política para o conflito. Vladimir Putin está a usar habilmente o timing favorável, tentando quebrar o isolamento internacional a que europeus e norte-americanos a pretenderam confinar, após a anexação da Crimeia e o apoio aos separatistas no Leste da Ucrânia.

2. Foram cometidos múltiplos erros de avaliação sobre o rumo da revolta na Síria. O primeiro foi pensar que o governo de Bashar al-Assad cairia facilmente, como na Tunísia ou no Egipto. O segundo foi imaginar que isso traria a paz e a democracia à Síria. O terceiro foi posicionar-se politicamente ao lado dos interesses dos Estados árabes sunitas ricos do Médio Oriente, aliados dos EUA — Arábia Saudita, Qatar, Emiratos, etc. — e também da Turquia. Se a Arábia Saudita, o Qatar e os Emiratos são autocracias que não respeitam os Direitos Humanos no seu território — o caso da Arábia Saudita é particularmente gritante neste domínio —, como poderiam apoiar revoltas genuinamente democráticas no exterior? Hoje é fácil ver as consequências desastrosas desses erros para a União Europeia, cujos interesses não coincidem, necessariamente, com os dos EUA na região. A Síria tornou-se um campo de batalha pela supremacia no Médio Oriente, entre teocracias sunitas (Arábia Saudita) e xiitas (Irão), luta na qual os europeus nada têm a ganhar. Os múltiplos grupos islamistas-jihadistas que combatem na guerra civil da Síria, tipicamente oriundos do Islão sunita, têm sido apoiados, directa ou indirectamente, pela Arábia Saudita, Qatar e Turquia, entre outros. (Esta última, no entanto, fez alguma alguma inversão da sua política nos últimos meses, devido à sua questão curda.) O resultado foi intensificar o conflito e as vagas de refugiados. A guerra civil da Síria atingiu a dimensão actual não apenas pela inquestionável violência e repressão punitiva das tropas de Bashar al-Assad. Ultimamente, é a extrema barbárie dos islamistas-jihadistas o principal causador de destruição e fuga em massa das populações, sejam minorias religiosas (cristãos, yazidis, drusos, etc.), ou étnicas (curdos), ou até dos próprios muçulmanos sunitas que não se revêm nesse totalitarismo islamista-jihadista. O seguidismo acrítico da política dos EUA face à Síria, a qual, por sua vez, é fortemente condicionada pelos seus aliados árabes sunitas do Médio Oriente, não é do interesse da União Europeia. Nada tem a ver também com valores de democracia e de Direitos Humanos.

3. É imperativo reverter toda esta situação que se está a tornar desastrosa. A crise ocorre numa área geopolítica onde a União Europeia tem de ser o principal actor e não ficar à espera dos EUA e da NATO. Impõe-se uma abrangente e assertiva política externa da União Europeia para Síria. O sucesso das medidas de política interna para actuar na crise dos refugiados, depende, em grande parte, da acção externa. Urge no plano da Política de Externa e de Segurança Comum, prosseguir uma estratégia que actue na origem do problema. i) Prossecução de uma abordagem concertada com os países vizinhos da Síria — Turquia, Líbano e Jordânia —, especialmente com a Turquia, pela sua maior proximidade da fronteira europeia. Objectivo: coordenação política das medidas para travar a crise dos refugiados, apoio financeiro e material ao seu acolhimento nesses países, já com grande sobrecarga de refugiados, ou para encontrar outras soluções. O Serviço Europeu para a Acção Externa (SEAE), deveria ter aqui uma rápida e eficaz actuação. Até agora, nem se tem dado conta da sua existência. ii) Pressão política e diplomática sobre os países árabes-islâmicos ricos — Arábia Saudita, Emiratos, Qatar, etc. Sejamos claros: se os governos europeus (e dos EUA) nada fazem, só pode ser por más razões. Ou estamos perante uma confrangedora inépcia política, ou então são condicionados pela pressão de lobbies empresariais com interesses em negócios de petróleo, armamento, etc., no Médio Oriente rico. Objectivos: abrirem as suas fronteiras aos refugiados; cessarem o apoio político, financeiro e militar aos grupos islamistas-jihadistas e outros beligerantes extremistas da guerra da Síria. ii) Lançar uma abrangente iniciativa diplomática para tentar solucionar politicamente a guerra na Síria, envolvendo as Nações Unidas, os EUA, a Rússia, o Irão e a Turquia, entre outros, mas também o governo de Bashar al-Assad. A ideia francesa e britânica de bombardeamentos aéreos pode ter algum impacto na diminuição das atrocidades do Daesh. No entanto, sem um elevado contingente de tropas no terreno, não é credível uma solução militar. Por sua vez, no actual contexto militar, enviar tropas de combate para o terreno é envolver-se num atoleiro. No pior cenário, arrisca-se até a aumentar a vaga de refugiados. É do interesse da União Europeia liderar, quanto antes, um processo de negociações internacionais.

A acção concertada europeia no plano interno da política europeia de acolhimento aos refugiados é, naturalmente, também imprescindível. Aqui são necessárias várias medidas. iv) Adequada coordenação das acções dos Estados-membros de ajuda aos refugiados. A ideia das quotas obrigatórias partiu de um bom princípio (o envolvimento de todos), mas é uma solução típica da burocracia europeia, mais habituada a lidar com excedentes agrícolas do que com refugiados. Gerou desnecessários ressentimentos pela tentativa da sua imposição pela Alemanha (e França), reavivando as feridas dos conflitos intra-europeus da crise da Zona Euro. v) Dotar de mais e melhores meios — humanos, financeiros e técnicos —, os programas e organismos, como o Frontex, ligados ao controlo das fronteiras externas da União. Só assim se poderá voltar a criar confiança no espaço de livre circulação interna de pessoas (espaço Schengen) e evitar que este se desintegre. vi) Clarificar, para a opinião pública europeia, os termos em que os refugiados são acolhidos. Importa explicar que se trata de acolher transitoriamente pessoas fugindo da guerra e de perseguições, com a sua sua vida em causa. É um dever moral e legal da União Europeia, o qual resulta, desde logo, da Convenção de Genebra sobre o Estatuto dos Refugiados de 1951. Mas a determinação na procura de uma solução negociada para a guerra da Síria deve ter por objectivo permitir que, mais tarde, a generalidade dos refugiados possa regressar ao seu país. Uma última nota. O futuro da União Europeia vai, provavelmente, jogar-se mais aqui do que na crise da Zona Euro, pelo cumular de tensões. Esta originou já grandes ressentimentos e a vontade de readquirir a soberania monetária em partes significativas da população. O problema atingiu agora, como a guerra da Síria e a incessante vaga de refugiados, um patamar ainda mais crítico. Se a União Europeia não consegue convencer os europeus que estão melhor, e mais protegidos, do que só com os Estados soberanos, então assistiremos a uma erosão da sua legitimidade e à reversão do processo de integração.

Investigador

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