Será esta uma reforma judiciária falhada?

Estes meses vieram demonstrar que politicas públicas implementadas sem capacidade de gestão e com lideranças assentes no autoritarismo, conduzem, inevitavelmente, a rupturas e a caminhos sem saída fácil.

1. Interroga o Presidente do Sindicato do Ministério Público em artigo recente no PÚBLICO: será esta reforma judiciária uma reforma falhada? O sentido da pergunta é motivado pelo impasse criado na aprovação dos estatutos das magistraturas, que continuam a marinar e sem fim à vista.

De facto, a reforma judiciária pressupunha que, antes da sua entrada em vigor, tivesse sido concluída a revisão dos estatutos. Não só os referentes às magistraturas – sendo que o do Ministério Público era de particular acuidade e urgência porque a reforma implicou alterações na sua forma de organização e funcionamento –, mas também o dos funcionários judiciais.

2. Não é esse facto, porém, que transforma a reforma numa reforma falhada! Continuo a acreditar que o seu modelo conceptual está basicamente correcto, ainda que susceptível de aperfeiçoamentos. E que aponta no caminho certo. Porque:

Adopta um novo modelo de tribunal de comarca de base territorial significativamente alargada (assente no distrito administrativo por ser uma realidade reconhecida, mas que pode ser qualquer outra realidade geográfica que esteja sociologicamente assimilada);

Estabelece que esses tribunais sejam constituídos por secções judiciais com tipologias e competências diferenciadas (ou seja, as especializadas, as de competência genérica e as de proximidade);

Cria uma secretaria judicial única para todo o tribunal de comarca e que serve todas as secções judiciais;

Concentra recursos tendo em conta a procura dos serviços de justiça;

Especializa a decisão judicial; e

Fecha tribunais cujo movimento processual se vinha consistentemente a revelar diminuto.

3. Mas uma coisa é a teoria e a parte conceptual; outra, bem diferente, é a sua implementação. Não se fazem reformas no papel, mas no terreno! E, neste particular, falhou muita coisa e bastante por se ter imposto a entrada em vigor do novo Mapa Judiciário em 1 de Setembro de 2014.

Cinco exemplos paradigmáticos:

Primeiro (e como já se referiu): não terem sido aprovados os estatutos profissionais antes da entrada em vigor da reforma, tal como tinha sido assumido perante os parceiros judiciários, e cujo trabalho de revisão começou em paralelo à discussão do projecto legislativo que originou a actual Lei 62/2013.

Segundo: não ter sido garantida, atempadamente, a formação e colocação dos funcionários judiciais necessários ao volume de trabalho expectável nas novas secretarias judiciais.

Terceiro: ter sido alterado o plano existente para enfrentar a questão tecnológica, o qual tinha basicamente duas vertentes:

a instalação do Citius Plus em todos os tribunais do País (abandonando-se definitivamente o Habilus/Citius), depois de corrigidas as insuficiências que estavam identificadas e a ser executadas, e que deveria funcionar até que estivesse operacional o novo sistema de informação para os tribunais previsto no Plano de Acção;

e, mais importante de tudo, o tratamento, antes da reforma entrar em vigor, das dezenas de bases de dados existentes nos tribunais, de modo a identificar e a autonomizar os dados estruturados dos dados não estruturados (que representavam cerca de 3/4 da informação existente nessas bases de dados, e onde estavam todos misturados) e a implementar mecanismos fiáveis de pesquisa de uns e outros.

Esse trabalho técnico referente às bases de dados era absolutamente essencial e crítico. Sem que estivesse concluído, consolidado e testado, os processos de migração teriam uma altíssima probabilidade de colapsar. Foi o que aconteceu. Como se não bastasse, sobreveio outro colapso, que originou o caos que todos testemunhamos: as fragilidades tecnológicas do Habilius/Citius, que manifestamente não poderia aguentar tanto “peso”!

Quarto exemplo: ter sido iniciado tarde demais o programa de obras de requalificação dos tribunais à nova estrutura judiciária, e sem que existisse um plano alternativo, devidamente explicado e consensualizado, para os casos com intervenções de maior dimensão e prolongadas no tempo.

Quinto: não ter sido elaborado um Plano de Comunicação para a fase antes e pós implementação do Mapa Judiciário. A não comunicação das estruturas, dos mecanismos e das decisões judiciárias tem (e teve), como consequência natural, a sua difícil compreensão pela generalidade das pessoas. E de tal modo se descurou este ponto que, numa outra vertente, a esmagadora maioria das instalações judiciais continua sem sinalética apropriada à nova realidade judiciária!

4. Menos de um anos depois da reforma ter entrado em vigor, os problemas enumerados são já constatações generalizadas. Mas, apesar da sua gravidade, não chegam para que esta seja uma reforma falhada!

5. Infelizmente para o valor da nossa democracia, esses problemas só não foram assumidos para os lados do Terreiro do Paço, onde não há o menor sentido de autocrítica nem de humildade para reconhecer limitações e erros. Só para apontar os dos outros! Alguns políticos são assim: estão tão empenhados em lutar por um lugar na história que, nas suas pequenas vaidades, se esquecem de ser garantes de qualidade da coisa pública!

Estes meses vieram demonstrar que politicas públicas implementadas sem capacidade de gestão e com lideranças assentes no autoritarismo, conduzem, inevitavelmente, a rupturas e a caminhos sem saída fácil. No caso da Justiça, essas posturas têm uma especial gravidade, porque o Sistema de Justiça é uma das áreas estruturantes do Estado em que o consenso deveria ser um valor reforçado e obrigatório.

 João Miguel Barros

Advogado

jmb@jmbarros.com

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