José da Silva Lopes

Silva Lopes nunca deixou de nos dar os seus alertas e de ser exemplo. Teremos de continuar a ouvi-lo.

Tive o grato gosto de encontrar José da Silva Lopes em vários momentos da minha vida, o último dos quais no Conselho de Prevenção da Corrupção, onde teve papel decisivo na afirmação e consolidação desta instituição que tanto ficou a dever à sua inteligência e bom senso. Era um exemplo de honradez e de rigor. Por isso entendia ser a prevenção da corrupção questão maior na consolidação da democracia.

Estou a vê-lo, durante tantos anos, a descer a Calçada do Combro a pé, como o cidadão comum que sempre desejou ser. Simples, com grande sentido de humor, atento, pessimista, determinado, trabalhador incansável, nunca disposto a baixar os braços, mesmo na procela mais dura e incerta – ei-lo igual a si mesmo. A história económica portuguesa do século XX regista a sua presença fundamental em todos os momentos decisivos do último meio século (leia-se o seu fundamental A Economia Portuguesa desde 1960, Gradiva). Em traços breves, não podemos esquecer que começou a trabalhar em questões do comércio internacional e da integração europeia na Comissão de Coordenação Económica, tendo estado na linha da frente das negociações da EFTA e do GATT, sob a orientação de José Gonçalo Correia de Oliveira, decisivo ministro da Economia no fim do isolamento de Portugal. Por determinação política do ministro e graças ao papel desempenhado pelo embaixador Teixeira Guerra, Portugal pôde ser convidado (contra o que seria uma tendência natural) para participar na criação da associação de comércio livre que tinha o Reino Unido como eixo de gravidade. Esse momento foi crucial para o fim da autarcia e para incentivar a industrialização portuguesa – em particular graças ao célebre anexo G, que concedeu um período de proteção mais longo à nossa indústria.

Não podemos compreender a recente história portuguesa sem o testemunho e a vida de Silva Lopes e sem reconhecer o seu papel. Começou por ser o braço direito técnico (como fez questão sempre de dizer) de Correia de Oliveira, no ministério e mesmo quando esteve na AIP, uma vez que não só conhecia muito bem os dossiês da integração económica, como também tinha uma aguda consciência política da importância da abertura económica para a criação das bases da transição democrática. Depois de 1968, foi diretor do Gabinete de Estudos do Ministério da Economia e depois administrador da Caixa Geral de Depósitos – tendo tido papel imprescindível na negociação do acordo de comércio preferencial (já que as condições políticas não permitiam mais) com as Comunidades Europeias, em virtude da adesão do Reino Unido. O seu desassombro de espírito levou-o a demarcar a sua atitude técnica da opção política. E foi fundamental o seu papel no aplainar dos caminhos para a democracia. Na SEDES e em outras instâncias disse o que pensava, isso causou-lhe incómodos, mas o prestígio pessoal impôs-se. O 25 de Abril de 1974 apanha-o em Paris, a negociar acordos económicos com Teixeira Guerra, regressando, com entusiasmo, a Portugal, num táxi alugado em Madrid. Rapidamente será chamado à primeira linha da ação como secretário de Estado das Finanças, no Governo de Palma Carlos, com verdadeiras funções de ministro das Finanças. A sua experiência e a sua independência pesam nessa escolha de Vasco Vieira de Almeida. No II Governo Provisório, já terá a designação de ministro das Finanças, ao lado de Emílio Rui Vilar, ministro da Economia. O momento é difícil, a revolução tem como pano de fundo um momento de perturbação mundial: sofrem-se os efeitos do choque petrolífero de 1973, mesmo assim as reservas de ouro são preservadas, mas as reservas em divisas esvaem-se. Apesar de tudo, a política monetária é moderadamente restritiva, perante as ameaças inflacionistas, o défice da balança de transações correntes, a redução das remessas dos emigrantes e o agravamento do défice orçamental, induzido pelo apoio aos preços fixos suportados pelo Fundo de Abastecimentos. O congelamento de preços e o aumento descontrolado de salários tem, no entanto, efeitos duradouros devastadores – que o ministro critica, sem ser ouvido. No fogo do período revolucionário, Silva Lopes tenta, sem grande sucesso, minorar as consequências do radicalismo e da ignorância económica. Na sequência de 11 de março, não advoga a nacionalização da banca, mas é levado a não se opor, limitando os efeitos da mesma (quanto aos bancos estrangeiros e ao Montepio). Depressa se apercebe, porém, que a sua margem de manobra é mínima. Demite-se da pasta das Finanças, uma vez que o radicalismo controla a decisão política numa lógica distante da racionalidade económica. Ainda fica fugazmente com a pasta do Comércio Externo, por insistência de Vasco Gonçalves, sem qualquer peso político, o que o leva a abandonar o Governo logo que o PS rompe com o compromisso em que o executivo se baseia. Com Pinheiro de Azevedo, Salgado Zenha convida-o para governador do Banco de Portugal. E aí, graças à ação internacional de Mário Soares, junto da Alemanha e dos Estados Unidos, com garantia das reservas de ouro, consegue negociar importantes apoios que evitam a bancarrota e que antecipam os programas de sucesso do FMI – concebidos com moderação e realismo…

A amizade com Richard Eckaus levou Silva Lopes a manter uma relação muito próxima com o MIT, beneficiando Portugal de apoios fundamentais da moderna ciência económica. Tal foi o caso do contributo de Rudiger Dornbusch no tocante ao crawling peg, um dos milagres da economia portuguesa: desvalorizávamos 1 por cento ao mês e garantíamos que se nos afastássemos desse valor reembolsávamos os investidores que tivessem contraído empréstimos a prazo. Era um seguro cambial que funcionou muito bem… Foi o tempo em que aqui esteve também Paul Krugman, que confessa ter aprendido muito com essa experiência. Foi, aliás, graças a Silva Lopes, à sua inteligência, sabedoria e conhecimento, que o Banco de Portugal e o seu Gabinete de Estudos se tornaram dos mais prestigiados nos meios económicos internacionais. Estes pontos demonstram como as extraordinárias qualidades pessoais, a experiência e o bom senso tiveram efeitos fundamentais. Silva Lopes nunca deixou de nos dar os seus alertas e de ser exemplo. Teremos de continuar a ouvi-lo.

Presidente do Tribunal de Contas

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