A Cinderela de Rossini tem um presente só para Lisboa ouvir

Estamos nos preâmbulos da I Guerra Mundial e vamos ouvir um coro raramente interpretado. Sob a direcção musical de Pedro Neves, encenação de Paul Curran com Oscar Cecchi, esta La Cenerentola não perde o sapatinho.

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A presente encenação de Cinderela, ou o triunfo da bondade já passou por Nápoles, Génova e Sevilha Miguel Manso
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Dois anos depois de Gioachino Rossini ter mostrado ao mundo pela primeira vez a sua Cinderela em Roma, ela chegava a Lisboa. Sem sapatinho mágico nem fadas, La Cenerentola estreava-se em 1819 no palco ao qual volta esta quarta-feira - dia em que chega com algumas novidades. Quase 200 anos depois, esta ópera “única” na forma como mescla riso e melancolia vai incluir Ah, della bella incognita, um coro no segundo acto que normalmente é amputado das suas encenações. Só no Teatro Nacional São Carlos.

Uma ópera que “já fazia falta no São Carlos”, descrevera em Setembro o então consultor artístico do teatro, Paolo Pinamonti, e uma ópera especial do compositor, segundo Óscar Cecchi, responsável pela reposição da encenação em Lisboa de uma obra que na última década já passou por Nápoles, Génova e Sevilha. Especial, porque sendo a música de Rossini algo “estranha”, sorri Cecchi sentado na plateia do São Carlos durante uma pausa no ensaio geral, “não há diferença na música”, quer ela evoque ou pinte um momento de comédia ou de tragédia em Cinderela, ou o triunfo da bondade.

Óscar Cecchi só está com La Cenerentola desde a sua mais recente paragem europeia, em Fevereiro de 2014, em Sevilha. “Mudei muitas coisas” em relação ao trabalho em Sevilha, e algumas quanto à encenação original de Paul Curran, explica ao PÚBLICO enquanto se movem os cenários, e a Orquestra Sinfónica Portuguesa, dirigida por Pedro Neves, faz uma pausa.

E agora a Lisboa, a humilde Angelina e o seu final feliz chegam com um ingrediente extra. “A principal diferença é o coro do segundo acto, que normalmente ninguém toca. Porque não foi escrito por Rossini, mas pelo seu assistente Luca Agolini”, diz Cecchi, explicando que este foi apenas um de vários contributos deste compositor assistente para La Cenerentola. Um coro recitativo e de tom dramático, que no São Carlos tem “uma nova direcção, uma cena completamente nova – nunca vista em Nápoles, nunca vista em Génova, nunca vista em Sevilha, só aqui.”

Rossini (1792-1868) fez “uma espécie de música de abstracção que não nos dá emoções especiais”, defende Cecchi. "Nesta ópera em particular, estas duas atmosferas – o buffo, cómico e engraçado e o trágico, triste e melancólico – estão ao longo de toda a composição da Cenerentola”, acrescenta.

O libreto de Jacopo Ferretti mistura a humilhação da Angelina/Cinderela da meio-soprano Chiara Amarù com o pavonear das irmãs Clorinda e Tisbe (as portuguesas Carla Caramujo e Cátia Moreso), o ridículo e a bondade. "É por isso que digo que Rossini é provavelmente o único compositor de ópera que tem esta capacidade”, conclui o encenador italiano.

La Cenerentola, composta, escrita e ensaiada em escassos 24 dias para responder a uma encomenda urgente do Teatro Valle de Roma, data de 1817 e tem por base o conto original de Charles Perrault. Não é uma versão delicodoce da história da Gata Borralheira, e “Rossini não faz uma Cinderela de Walt Disney”, nem um conto de fadas, frisa Cecchi.

Rossini pediu ao seu libretista que eliminasse magias e criaturas fantásticas da sua futura ópera – o sapato de cristal deixado ao príncipe Ramiro (Jorge Franco) é uma singela pulseira, a fada-madrinha é Alidoro (Luca Dall’Amico), um tutor filósofo –, muito por questões técnicas que poderiam minar a encenação, mas também pelos costumes, porque, à época, um pé descalço em palco, por exemplo, era impensável. E a madrasta é, afinal, um padrasto, Don Magnifico (o português José Fardilha).

Os tons pastel e as flores Arte Nova dos cenários do primeiro acto já vão longe e o sono preguiçoso de Don Magnifico e suas filhas indolentes foi interrompido pela iminente festa que pode salvá-los da penúria. É uma certa aristocracia que não vive em palco num tempo de fantasia, mas sim com os pés na terra numa espécie de prelúdio da I Guerra Mundial. “Foi uma escolha de Paul Curran, porque, segundo ele, este é o último momento para o qual podemos verdadeiramente transportar a acção [de forma] verosímil”, explica Cecchi, crítico da forma como “actualmente muitos encenadores” situam as óperas clássicas na contemporaneidade. “Às vezes resulta, outras vezes não. Às vezes é preciso forçar o texto e forçar a música para criar essa ideia”, lamenta. E La Cenerentola por Curran e Cecchi encontra-se no limite, algures entre 1910 e 1912, quando “ainda existia uma aristocracia” e a possibilidade de alguém “escolher uma noiva porque a ama”.

Cecchi já tinha trabalhado com o escocês Paul Curran (que começou como assistente do realizador australiano Baz Luhrmann e se tornou director da Ópera Nacional Norueguesa entre 2007 e 2011), nas duas únicas comédias do seu currículo – O Barbeiro de Sevilha, também de Rossini e a antecessora, muito mal recebida na sua estreia no século XIX, de La Cenerentola, e Sonho de Uma Noite de Verão, de Benjamin Britten).

Cinderela “é muito particular” porque, apesar do gosto por este dramma giocoso de Rossini, “vi-a muitas vezes em produções que achei muito enfadonhas”. Agarrá-la, agora, é um “desafio muito grande”, “um puzzle” em que “tudo é cena” – “tento dar-lhe mais energia”, revela o encenador.

Cinderela, ou o triunfo da bondade está no São Carlos nos dias 25, 27, 30 de Março e 1 de Abril, às 20h, e no dia 29 de Março, às 16h, contando ainda com o Coro do teatro nacional. 

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