Direitos fundamentais foram afectados pela crise, sobretudo o do trabalho

Relatório publicado pelo Parlamento Europeu avalia “o impacto da crise nos direitos fundamentais” em sete países. E deixa recomendações para que sejam preservados no futuro.

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A taxa de desemprego entre os professores subiu 151% durante a crise FERNANDO VELUDO/ NFACTOS

A primeira frase do documento dedicado a Portugal resume assim o “severo” impacto da crise no país: “O desemprego mais do que duplicou desde 2008, a emigração atingiu números recorde (mais de 300 mil pessoas saíram do país nos últimos três anos) e o PIB encolheu para níveis de 2000.” Pelo caminho, vários direitos fundamentais “foram afectados”, sobretudo o direito ao trabalho. Estas são conclusões de um relatório publicado nesta terça-feira pelo Parlamento Europeu (PE) sobre “o impacto da crise nos direitos fundamentais” em sete países: Portugal, Espanha, Grécia, Chipre, Irlanda, Itália e Bélgica.

Os relatórios, um para cada país, mais um comparativo, foram elaborados a pedido da comissão parlamentar das Liberdades Cívicas, Justiça e Assuntos Internos. No documento sobre Portugal faz-se a breve história da austeridade, desde que foi publicado o Orçamento do Estado para 2010, com “as primeiras medidas”. Para cada área, deixam-se recomendações para assegurar o “pleno gozo dos direitos fundamentais no futuro”. O PÚBLICO seleccionou cinco.

Direito à educação
Os direitos das crianças portuguesas foram bastante afectados, sobretudo no que diz respeito à educação, refere-se. Diz-se, por exemplo, que a austeridade teve um impacto grande “na qualidade das escolas públicas”, que houve cortes com “efeitos sérios” na educação especial, que as condições de trabalho dos professores são hoje piores “do que há uma década”, que o abandono escolar está a aumentar. Relata-se ainda que a taxa de desemprego entre os professores subiu 151%, devido, entre outras, à redução dos apoios aos alunos nas escolas e à extinção de áreas não curriculares. E recomenda-se: são necessárias medidas para resolver os problemas mais urgentes da Educação, que passam por aumentar o investimento público no sector, reduzir o número de alunos por turma, reinvestir na educação especial e nos apoios que são dados às crianças com necessidades especiais.

Direito ao trabalho
“O direito ao trabalho foi provavelmente o mais afectado pelas medidas de austeridade” em Portugal, lê-se. E recapitulam-se medidas que para isso contribuíram: cortes salariais no sector público (aconteceu o mesmo no Chipre, na Grécia, na Irlanda); alterações nas regras de despedimento colectivo, nomeadamente com base no argumento da “extinção de posto de trabalho”; redução significativa das indemnizações a pagar, algo que também aconteceu em Espanha; congelamento do salário mínimo (na Grécia, começou por ser congelado e acabou por ser reduzido, em Portugal decidiu-se um aumento a partir de Outubro de 2014).

O relatório nota que o desemprego disparou nos últimos anos e que Portugal, a par da Espanha, são dos que registam as mais altas taxas de desemprego jovem (53% e 34% em Novembro de 2014, respectivamente). Algumas recomendações deixadas: são precisas políticas activas de promoção do emprego, “que levem em conta as necessidades das pequenas e médias empresas”; é preciso dar atenção especial a grupos mais vulneráveis (como os jovens) e seria útil promover contratos de trabalho mais estáveis. Citando um outro estudo, de 2013, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), reitera-se a necessidade de se fazer uma avaliação dos resultados das mudanças laborais dos últimos anos, “que não parecem ter tido seguidas por mais ou melhor emprego”.

Mais: “A austeridade também afectou a negociação colectiva.” E cita-se de novo a OIT ao dizer-se que “a clara redução do número de acordos colectivos de trabalho [registada nos últimos anos] pode ter sérias consequências económicas e sociais, especialmente porque tende a conduzir a uma redução dos salários e a uma deterioração das condições de trabalho”. Contactado pelo PÚBLICO, José Silva Peneda, presidente do Conselho Económico e Social, refere que não conhece o trabalho do PE divulgado nesta terça-feira. Mas que a crítica ao que se tem passado com a negociação colectiva, “um dos pilares da construção do modelo social europeu”, é “muito justa”. E lembra que ele próprio, ouvido como perito, no ano passado, pelo PE, defendeu que a “forte restrição à publicação de portarias de extensão (...) conduzirá inevitavelmente à desregulação do mercado de trabalho”. As portarias de extensão permitem alargar as condições de trabalho negociadas entre as associações patronais e os sindicatos a todos os trabalhadores de um determinado sector.

Direito à saúde
“Todos os Estados-membros adoptaram medidas que afectaram o acesso à saúde”, sendo que só a Bélgica tomou medidas para minorar os problemas, nota-se. Em Portugal, diz o relatório, fecharam-se unidades de saúde, aumentaram-se taxas moderadoras, foi reduzida a disponibilidade de transporte grátis para as unidades de saúde dos doentes não-urgentes. O acesso à saúde é hoje mais difícil: “Habitantes do interior do país e das regiões mais isoladas têm cada vez mais dificuldades” em aceder aos serviços. Mas, reconhece-se, nem todas as reformas tiveram impacto negativo. Por exemplo: a redução dos preços dos medicamentos e a prescrição electrónica, também introduzida na Grécia, que permite controlar excesso de prescrição. Citando-se as recomendações do Observatório Português dos Sistemas de Saúde sugere-se, entre outras, “a avaliação e revisão das normas que regulam as taxas moderadoras e as isenções”.

Direito às pensões
Os pensionistas portugueses “sofreram cortes de 2011 a 2014”. E as regras de cálculo dos montantes das pensões mudaram “dependendo não só da idade e da carreira laboral do trabalhador, mas também do factor de sustentabilidade relacionado com a esperança de vida aos 65 anos registada no ano 2000”. Estes são alguns dos exemplos referidos sobre como foram afectados os pensionistas em Portugal. De resto, Grécia, Irlanda e Portugal introduziram “mudanças sistémicas” para reformar o funcionamento do sistema de pensões. Em Portugal, tal como na Irlanda e na Itália, a idade da reforma passou dos 65 para os 66 anos. E houve limitações às reformas antecipadas. O tema, lembra-se, tem sido muito debatido na sociedade portuguesa e há “muitas visões diferentes, mesmo opostas” sobre se são necessárias mais reformas ou, pelo contrário, se se deviam “restabelecer algumas das regras legais que estavam em vigor antes da crise”. Daí “a dificuldade” em deixar recomendações. “Uma coisa podemos dizer: a austeridade e as medidas de redução do défice não podem continuar a tratar os pensionistas pior do que os seus concidadãos.”

Direito à segurança social
Portugal e Irlanda são mencionados como os países onde este direito foi “especificamente afectado”. O relatório cita a Unicef e o Observatório sobre Crises e Alternativas para dizer que “as mudanças na atribuição de várias prestações sociais (...) tiveram consequências sérias no número de pessoas a viver na pobreza ou em privação material.” E partilha algumas recomendações das duas organizações: são precisas “políticas nacionais” de combate à pobreza infantil e “uma revisão do regime legal em vigor” do rendimento social de inserção, já que este tem “comprovadamente” impacto no combate à pobreza. Uma “avaliação” às mudanças introduzidas na protecção aos desempregados é também sugerida.

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