A base das Lajes e a lição de Guilherme II

Os decisores políticos portugueses devem continuar a negociar com os norte-americanos de forma privada, construtiva e a uma só voz.

Em 1912, em pleno crescimento da tensão entre a Alemanha e o Reino Unido, o lord Haldane, na ocasião à frente do Almirantado, visitou Berlim, para tentar encontrar um compromisso entre os dois Estados. Em rigor, não obstante a existência de divergências essenciais, ambos tinham ainda como objectivo evitar o confronto através da negociação.

Os alemães tentavam mesmo há já algum tempo uma aliança com os britânicos, enquanto estes últimos, embora recusando um compromisso dessa natureza, estavam disponíveis para oferecer uma Entente Cordiale, algo que ficava a meio termo entre a pretensão de Berlim e os objectivos de Londres. Mas o kaiser Guilherme II optou por uma via de tudo ou nada, rejeitando de forma dura a proposta de Haldene, convencido de que assim obteria a máxima concessão do Governo inglês. A este respeito, escreveu ele, após o encontro: “Mostrei aos ingleses que, quando tocam nos nossos armamentos, mordem em granito. Talvez assim tenha aumentado o seu ódio, mas ganhei o seu respeito, que os induzirá, no devido tempo, a concluir as negociações, num tom, esperamos, mais modesto e com um resultado mais feliz”.  

Guilherme II conseguiu o resultado exactamente oposto ao pretendido. Quando chegou ao poder, o jovem kaiser recebeu de Bismarck, que demitiu em 1890, uma herança que era quase o melhor dos mundos: a Alemanha tinha uma aliança com a Rússia, a Áustria e a Itália, não existindo qualquer coligação hostil a Berlim, uma vez que o Reino Unido estava no seu “glorioso isolamento” e a França tinha ficado sozinha. Poucos anos depois, ele tinha conseguido o que até então parecia impossível, ou seja, que britânicos, franceses e russos estivessem do mesmo lado, enquanto os alemães se encontravam quase isolados. Em 1914, quando começou a Primeira Guerra Mundial, a Alemanha teve de enfrentar uma aliança de todas as outras grandes potências da época, como o Reino Unido, a França e a Rússia – a Triple Entente –, contando apenas com o apoio de potências comparativamente menores, como a Áustria-Hungria e a Itália – a Tripla Aliança.

Na sequência da decisão dos EUA de alterar o perfil e diminuir o número de efectivos na base das Lajes, nos Açores, vários dirigentes políticos portugueses têm feito declarações que vão da imprudência à irresponsabilidade. No debate quinzenal no Parlamento, o primeiro-ministro Pedro Passos Coelho ameaçou publicamente com a revisão do acordo técnico que fixa as regras da presença norte-americana na ilha Terceira. Mas, pior de tudo, de forma irresponsável, o presidente do Governo Regional dos Açores, Vasco Cordeiro, falou da possibilidade de uma qualquer espécie de entendimento com a China na ilha. Com as devidas diferenças, ambos repetem o erro de Guilherme II, que, inexperiente e mal preparado – além de mais preocupado em agradar internamente –, confundiu fanfarronice com firmeza, impetuosidade com coragem, orientação estratégica com oportunismo táctico, com o resultado que a Primeira Guerra Mundial demonstrou.

O mero conhecimento dos factores determinantes da política externa portuguesa ao longo de quase toda a sua história permite perceber a importância que a aliança com os EUA tem para Portugal. Pela pura geografia, esta assentou sempre num equilíbrio entre a terra e o mar, isto é, entre o continente europeu e o Atlântico, tendo como principais eixos a independência e não subalternização relativamente a Espanha, a aliança com a maior potência marítima e atlântica e, até ao processo de descolonização, a extensão imperial. Estes mantiveram-se constantes desde pelo menos o século XIV, mudando apenas no grau e na forma consoante a própria evolução das circunstâncias externas: a questão da Espanha evoluiu de uma orientação assente em fazer parte de um sistema de relações internacionais diferente para integrar as mesmas alianças; a aliança com a maior potência marítima e atlântica transferiu-se do Reino Unido para os EUA; o império colonial deu lugar à relação privilegiada com os países de língua portuguesa.

No que diz respeito ao caso que aqui interessa, é fundamental ter presente a importância para Portugal da existência de uma compensação vinda do Atlântico que atenue a pressão da fronteira terrestre, desde logo, numa perspectiva histórica, proveniente da ambição anexionista, ou no mínimo hegemónica, da Espanha, mas também, mais recentemente, dos projectos da Alemanha de deslocação da Europa para o Leste. Seja como for, o Atlântico garante simultaneamente a independência nacional, a segurança e a não marginalidade estratégica do país.

Desde o pós-Segunda Guerra Mundial que a dimensão atlântica está institucionalizada numa dupla forma: primeiro, a aliança bilateral com os EUA, formalizada pelo acordo de cooperação militar luso-americano cujo epicentro é a base das Lajes; segundo, a aliança multilateral traduzida na NATO, liderada por Washington. Para demonstrar a importância de ambas, e logo dos Estados Unidos, para os interesses vitais de Portugal, talvez seja suficiente dizer que foi o antiliberal, antidemocrático e antiamericano Salazar quem decidiu abandonar a tradicional política de neutralidade do país e integrar o bloco militar norte-americano. A primeira pergunta que os decisores políticos portugueses devem fazer é então se querem continuar a fazer parte do sistema de segurança do Atlântico Norte construído no pós-1945, sendo aqui o acordo dos Açores essencial. Dito de uma forma caricatural: queremos uma aliança de defesa comum liderada pelos EUA, ou um acordo de emprego, que nunca passará de um delírio, com a China?

Além disso, a questão coloca-se numa altura em que, ao que tudo indica, para o ano será analisada pela ONU a proposta de alargamento da plataforma continental portuguesa para além das 200 milhas marítimas, podendo eventualmente o país adquirir uma vasta área sob a sua soberania. Ora, a questão é essencial, mas não pacífica, havendo várias zonas de choque de projectos, como o espaço reivindicado simultaneamente por Portugal e pela Espanha, que inclui por exemplo as ilhas Selvagens. Será escusado dizer que a pretensão portuguesa terá muito poucas hipóteses se não contar com o apoio norte-americano.

Acresce que a decisão da Administração Obama relativamente às Lajes não é um acto isolado, especificamente para Portugal, antes se enquadra numa reestruturação das suas infra-estruturas na Europa, que inclui a supressão de mais de uma dezena de bases e a redução e relocalização de efectivos, atingindo vários países europeus. Mais, ela insere-se na nova orientação estratégica conhecida por “Retraimento” que visa diminuir o âmbito do envolvimento do país no exterior, bem como o custo a pagar pela segurança do mundo, estando já negociada entre a Casa Branca e o Congresso uma redução de 460 milhares de milhões de dólares do orçamento de defesa.

Não quer isto tudo dizer que Portugal não deva reagir ao retraimento dos EUA nas Lajes. Deve fazê-lo e um bom guia de actuação pode ser fazer tudo ao contrário de Guilherme II em 1912. Com firmeza, mas discrição e moderação, em vez de fanfarronice e alarido público. Os decisores políticos portugueses devem continuar a negociar com os norte-americanos de forma privada, construtiva e a uma só voz, focando-se em obter compensações pelo impacto que a decisão tem num aliado que até em horas difíceis, como a da invasão do Iraque de 2003, esteve ao lado de Washington. E, acima de tudo, centrando-se na manutenção do essencial, ou seja, a continuação da dupla aliança com os Estados Unidos: a bilateral, do acordo de cooperação militar, e a multilateral, da NATO. Até porque, não só a história demonstra que os norte-americanos mudam mais vezes de política externa do que os outros povos, como os acontecimentos encarregar-se-ão disso: do ressurgimento russo ao chamado Estado Islâmico, da Síria ao Iraque, do Norte de África ao Sahel. Resta saber se queremos ser Bismarck ou Guilherme II.

Universidade Nova e IPRI-UNL

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