Uma sociedade do GES que ninguém conhece e as suspeitas no Brasil

A ES Enterprise, um veículo do universo GES alegadamente usado para pagamentos não documentados, pode fazer parte de um escândalo internacional. Isto caso se prove que, através desta sociedade opaca, detida pela Espírito Santo International, se movimentaram verbas destinadas a contas de entidades extra-grupo, nomeadamente da esfera política.

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Ricardo Salgado, quando foi ouvido na Comissão de Inquérito ao BES Daniel Rocha

A empresa mais secreta do Grupo Espírito Santo (GES), que nem sequer consta do organograma oficial, pode ter actuado em várias zonas geográficas: Portugal, Suíça, Angola, Brasil e Venezuela. Os investigadores podem estar ainda longe de garantir grandes conclusões sobre o tema GES que envolve o perímetro de acção da ES Enterprise. Mas há um dado certo: a opacidade desta empresa-veículo que se admite poder ter sido usada nos últimos anos para movimentar cerca de 300 milhões de euros.

Referindo-se à ES Enterprise, os círculos próximos de Ricardo Salgado explicam que o veículo era um meio para pagar bónus a colaboradores do GES que trabalhavam em várias sociedades. A explicação tem suscitado sorrisos e muitas dúvidas da parte de dirigentes do GES e do BES. José Manuel Espírito Santo, um dos membros do Conselho Superior do GES, e da comissão executiva do BES, garantiu aos deputados da Comissão Parlamentar de Inquérito que nunca tinha ouvido falar na ES Enterprise até o PÚBLICO divulgar a sua existência, como eventual "saco azul" do GES. O mesmo disse o presidente do BESI, José Maria Ricciardi: “Nunca tinha ouvido falar da empresa”.  

“Teoricamente, a maneira mais segura de manter sigilo sobre a existência de uma sociedade que é usada como saco azul é restringir o seu conhecimento a um núcleo reduzido de protagonistas, geralmente a um chefe ou mais uma pessoa”, observa uma fonte judicial, ao PÚBLICO.

O braço direito de Ricardo Salgado, o secretário do Conselho Superior do GES, José Castella, e o ex-contabilista do grupo, Francisco Machado da Cruz (que assumiu ter ajudado a ocultar 1300 milhões de euros de perdas da ESI), eram dois dos administradores da ES Enterprise. E ambos estiveram em São Bento a prestar declarações aos deputados, à porta fechada. 

Castella pouco falou da ES Enterprise, e assegurou que "nunca assinou" nenhum documento, sendo o seu cargo meramente formal, desconhecendo mesmo qual seria o objecto social da sociedade. Castella apontou os holofotes para Francisco Machado da Cruz ao dizer aos deputados que o ex-contabilista “podia tomar decisões sem o contactar”. Machado da Cruz admitiu ter sido informado que a ES Enterprise estava encerrada e garantiu: "Nunca vi um balanço.”

Por seu turno, o presidente da Escom (do GES), Hélder Bataglia, ouvido na CPI a semana passada, começou por dizer que estava, como “todos”, “a ouvir falar nessa empresa", pela primeira vez, mas acabou por admitir ter tido "um contrato com" a ES Enterprise "de pagamentos de comissões" por negócios na área da energia. Explicou: “Sempre pensei que fosse uma empresa de investimento do GES” e desconhecia quem eram os gestores.

A ES Enterprise movimentava dinheiro através de uma sociedade da suíça Eurofin Securities, de Alexandre Cadosch, que é suspeita de ter ajudado Salgado a contornar os limites de exposição do BES ao GES impostos pelo BdP. Para além de barriga de aluguer de activos do GES, a Eurofin era, em simultâneo, financiadora do GES.

Entre as operações que podem ter despertado o interesse da investigação está a venda pela PT de 50% das acções da brasileira Vivo à empresa espanhola Telefonica (que pagou 7500 milhões de euros) e a entrada da Oi na PT. Estes negócios simultâneos tiveram lugar em 2010 e podem ter movimentado verbas “extra” de 200 milhões de euros.

Os governos dos três países envolveram-se a fundo nas negociações. José Sócrates procurou uma solução para que a PT mantivesse um papel do outro lado do Atlântico, enquanto a equipa de Lula da Silva sugeriu a possibilidade de fusão da empresa portuguesa com a brasileira Oi e o governo espanhol garantiu que a Telefónica ficava com o domínio da Vivo. A PT desembolsou 3650 milhões por 22% da Oi, que acabou por entrar na PT, financiada pelo BNDES, o banco estatal do Brasil.

Em Setembro de 2012, num depoimento à Procuradoria-Geral da República brasileira, Marcos Valério (o principal arguido do caso “mensalão”) relaciona a Portugal Telecom com aquele esquema de corrupção. Acusou a operadora portuguesa (detida em 20% pelo BES e pela Ongoing) de ter pago ao partido de Lula da Silva, num negócio feito pessoalmente por Miguel Horta e Costa (ex-presidente da PT e vice-presidente do BES), tendo “o repasse dos recursos sido feito por meio de contas de publicitários que prestavam serviços ao PT”. Horta e Costa foi recentemente constituído arguido, em Portugal, na sequência de um pedido das autoridades brasileiras. “Tratou-se de uma calúnia sem fundamento, feita em 2012”, assegurou o gestor português.

Na mesma altura, o ex-deputado Roberto Jefferson declarou à justiça que os políticos brasileiros envolvidos neste esquema receberiam dinheiro do GES após uma negociação intermediada por Marcos Valério, a pedido de José Dirceu, o antigo chefe da Casa Civil do ex-Presidente da República Lula da Silva. Dirceu cumpre uma pena de prisão de dez anos pelos crimes de formação de quadrilha e corrupção activa no caso "mensalão". A comunicação social brasileira tem referido que as verbas (que podem chegar a 40 milhões de dólares) que saíram do GES se traduziram numa comissão pela transferência de recursos do extinto Instituto de Resseguros do Brasil (IRB). Destas declarações, e de outras realizadas no mesmo sentido, não resultaram condenações.

Há outra pista na América do Sul: as ligações do GES à Venezuela são antigas e “muito profundas”, como relatou Hélder Bataglia na CPI, e remontam ao tempo em que Hugo Chávez era o presidente. O gestor da Escom lembrou o papel muito importante que desempenhou na aproximação de Portugal àquele país latino-americano. Ainda que Bataglia se reportasse aos anos de 2003 a 2004, o gestor notou que os frutos do seu trabalho, como facilitador da relação luso-venezuelana, foram recolhidos por Portugal anos depois. Em 2008 José Sócrates esteve na Venezuela a negociar petróleo e portáteis Magalhães. E o BES tinha entre os seus grandes clientes a Petróleos de Venezuela (PDVSA) que se tornou um dos maiores credores do Grupo Espírito Santo, depois de ter investido centenas de milhões de euros em dívida de curto prazo das holdings não financeiras que estão na origem de cartas de conforto assinadas por Salgado à revelia do BdP.

A Procuradoria-Geral da República não respondeu às perguntas do PÚBLICO sobre o papel da ES Enterprise na investigação ao universo Grupo Espírito Santo, nem se pronunciou sobre as possíveis ramificações internacionais desta investigação. 

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