O trabalho dá saúde?

Urge uma real (e não apenas discursiva ou virtual) integração das políticas de trabalho e emprego com as políticas, organização e meios da saúde pública.

Sim, diz o povo: “O trabalho dá saúde.” É sábio o velho provérbio, na ligação que estabelece entre trabalho e saúde. A saúde não é um assunto privado, que dependa só da genética e do comportamento individual. Influem nela, e muito, as circunstâncias sociais e económicas em que as pessoas nascem e vivem. E se há circunstâncias que mais influem na saúde das pessoas, essas são as condições em que estas trabalham.

O trabalho é condição de sustento, de realização pessoal, de integração, de reconhecimento e apoio social. E, portanto, de equilíbrio físico e mental, logo, em princípio, de saúde. Por isso, a Saúde, a saúde de cada um e a saúde pública em geral estão intimamente relacionadas com o trabalho, quer com as condições do seu exercício, com o emprego, quer com as da sua privação, com o desemprego.

De facto, antes de mais, há que considerar as consequências para a saúde da privação do trabalho, do desemprego – o qual, para além de excluir as pessoas profissional e socialmente (inclusive a nível familiar), retira-lhes a possibilidade de satisfação das necessidades essenciais e, com os prejuízos humanos, profissionais e sociais que tal projecta, desequilibra-as física e mentalmente e, assim, faz perigar a sua saúde.

Sim, certo. O desemprego não dá saúde. Mas – voltamos à pergunta – e o trabalho? Dá (mesmo) saúde?

No seu último relatório (Relatório da Primavera – 2014, conhecido em 30/6/2014), o Observatório Português dos Sistemas de Saúde (OPSS), dos “dez principais factores de risco da saúde e respectiva contribuição relativa estimada para o peso da doença” que enumera considera que os “riscos ocupacionais” são o penúltimo factor menos importante, com uma valoração de 1,7% (o mais importante é o “uso do tabaco”, com 11,7%).

Mas, então, só 1,7% das situações com que se depara o nosso sistema de saúde têm a ver com as condições em que, nas empresas e na função pública, as pessoas realizam o trabalho?

Mas, então, muitas das situações de cancro não terão origem ou serão agravadas nos locais de trabalho, onde, muitas vezes, os trabalhadores são quotidianamente expostos a substâncias, preparações ou processos potencialmente cancerígenos? As doenças respiratórias não têm nada a ver com as condições (in)aeróbicas (empoeiramento, concentrações de fumos e gases tóxicos, ar continuamente rarefeito) e térmicas em que, durante anos, as pessoas trabalham? O alastramento das incapacitantes lesões ou doenças músculo-esqueléticas não advirá muito da progressiva sobreintensificação das tarefas e gestos repetitivos que é timbre dos “novos” modelos de organização do trabalho neotailoristas? Muito do sofrimento mental e suas consequências (eventualmente, suicídios) não tem origem ou foi agravado pelas condições físicas e psicológicas (sobrecarga física e mental) e sociais (relações e “clima” social do trabalho), em que o fomento da competição individual divide e isola socialmente cada vez mais as pessoas, num contexto em que, muitas vezes, emerge a violência psicológica, o assédio moral e até a violência física?

Permanece ainda muito o equívoco de que as condições de segurança e saúde do trabalho são uma questão meramente “laboral” ou “legal”, que não tem que sair das “caixas negras” da organização empregadora, da Administração do Trabalho e dos tribunais.

Sem dúvida, os primeiros responsáveis pelos riscos para a saúde das pessoas associados às condições em que estas realizam o trabalho são os empregadores (empresas e administração pública), os quais, por lei (Art.º 281.º do Código do Trabalho, com suporte e desenvolvimento na Constituição da República Portuguesa e noutra legislação nacional, comunitária e internacional), devem “assegurar aos trabalhadores condições de segurança e saúde em todos os aspectos relacionados com o trabalho”.

Mas, para além deste enfoque legal, quando há graves problemas orçamentais, de recursos e de incapacidade de resposta oportuna do SNS às várias explicações de todos os dias, é preciso acrescentar a reflexão sobre as consequências para o sistema público de saúde das condições de segurança e saúde nos locais e situações de trabalho.

De facto, a não prevenção dos riscos profissionais nos locais de trabalho é uma forma oculta de “captura” do SNS pelos empregadores (empresas e administração pública, repete-se), ao transferirem para o SNS os custos da resolução de problemas de saúde dos trabalhadores que eles próprios, como empregadores, têm obrigação legal de prevenir e tratar. Não só têm obrigação como têm (deverão ter) interesse, já que, em qualquer organização, é também das condições de trabalho que depende a qualidade e produtividade da produção que fornece ou dos serviços que presta.

Além disso, é uma desumanidade perversa que a falta de prevenção, nos locais de trabalho, dos riscos para saúde dos trabalhadores se repercuta no SNS em termos de, por algum modo, prejudicar a resposta deste serviço público aos seus utentes, visto que, afinal, estes são, na maioria,… os próprios trabalhadores.

Por isso, os “riscos ocupacionais” não são uma mera questão de “saúde do trabalho”, na acepção de estritamente reportada aos empregadores e apenas confinada aos (nos) locais de trabalho. São também uma questão de saúde pública.

E, portanto, pelas suas enormes repercussões sociais, bem como pelos impactes macroeconómicos que projecta, uma questão eminentemente social e política.

Daí que esteja também aqui em causa, sem dúvida, a administração do trabalho, mais concretamente, a Autoridade para as Condições do Trabalho. Mas também a administração da saúde, no que respeita à formação, condições de trabalho, meios e sensibilidade dos profissionais de saúde para este domínio. E, bem assim, quanto a medidas de ordem organizacional (organização, metodologias, meios e da valência ocupacional das unidades do SNS) e até de ordem administrativa, quanto à acção (e articulação) das autoridades das áreas do trabalho e da saúde.

Em geral, o trabalho carece de mais atenção social, institucional e política, dada a sua centralidade social e consequente projecção em quase todos os domínios sociais, designadamente no domínio da saúde.

Portanto, não obstante não haver memória de um ministro do Trabalho (que, aliás, agora, organicamente, nem sequer existe) se posicionar sobre a saúde pública ou um ministro da Saúde se interessar pelas condições de trabalho, urge uma real (e não apenas discursiva ou virtual) integração das políticas de trabalho e emprego com as políticas, organização e meios da saúde pública.

Num contexto de volume “intolerável” de desemprego, precarização do emprego e consequente degradação das condições de trabalho e, por outro lado, de diminuição dos apoios sociais e das condições de acesso aos serviços públicos de saúde, o velho provérbio popular é, pelo seu potencial de reflexão (e, tanto quanto possível, de acção), ainda mais sábio.

Sobretudo se, adaptando-o às circunstâncias, lhe acrescentarmos um caracter, um ponto de interrogação: O trabalho dá saúde?

Inspector do Trabalho (aposentado)

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