Última paragem: Moscovo

Até onde cederá o Presidente americano para garantir mais uma grande vitória em Helsínquia e retomar uma bela amizade.

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Trump e Putin na cimeira do G20 em Hamburgo, em Julho de 2017 Carlos Barris/Reuters

Depois de Bruxelas e de Londres, Donald Trump estará nesta segunda-feira em Helsínquia para uma cimeira, a primeira, com o seu homólogo russo. A incerteza sobre o que pode acontecer é total. Vladimir Putin só pode ganhar.

É a última paragem da visita do Presidente americano à Europa e, talvez, aquela que mais preocupa os aliados ocidentais. O método utilizado ficou definido em Bruxelas e em Londres. Trump afirmou-se sem subterfúgios como o “grande desordeiro” da ordem internacional que ainda sobrevive, assente nas instituições multilaterais que os EUA criaram depois da II Guerra. Ameaçou os aliados da NATO e atacou sem qualquer diplomacia ou, sequer, decoro, a primeira-ministra britânica.

Vladimir Putin olha para ele como um “parceiro” para rever essa mesma ordem, que ele próprio rejeita todos os dias. No poder há quase vinte anos (com uma ligeira interrupção, quando cedeu o lugar a Dmitri Medvedev? para cumprir as regras da Constituição sobre os mandatos presidenciais), o Presidente russo tem um só objectivo: devolver à Rússia o estatuto de grande potência de que dispunha a União Soviética. Foi ele que disse que a sua implosão, em 1991, foi a maior catástrofe do século XX. O seu método é ignorar as leis internacionais e recuperar progressivamente as zonas de influência a que chama de “estrangeiro próximo”, particularmente na Europa. Não olha a meios. Quer ser, ao mesmo tempo, o adversário dos EUA e o seu “parceiro” na condução de um sistema internacional em que prevalecem as relações de força.

“De facto, o Kremlin há meses que insistia numa cimeira”, escreve Alina Polyakova da Brookings Institution. “Putin tem muito a ganhar e nada a perder” e uma longa lista de reivindicações. De novo a analista da Brookings: “Pôr fim à política de porta-aberta da NATO; acabar com a presença militar americana na Europa Ocidental; reduzir a presença militar nos Bálticos; reconhecer a Crimeia e acabar com as sanções ocidentais”.

Trump precisava de se libertar da sombra do envolvimento russo nas eleições presidenciais de 2016 ou dos massacres na Síria. A data foi fixada em cima da hora, não permitindo o grau de preparação que estes encontros exigem da diplomacia. Não foi com certeza coincidência o vice-procurador geral dos EUA ter anunciado na sexta-feira as acusações contra 12 russos dos serviços de espionagem por interferência nas eleições presidenciais americanas. Moscovo já veio dizer que a acusação visa “piorar a atmosfera antes da cimeira”. O que dirá Trump?

Putin já ganhou?

Para Vladimir Putin o momento é quase perfeito. Quando o seu homólogo americano lança o pânico na NATO, deixando os seus aliados em dúvida sobre o futuro, Putin aplaude. Quando Trump visa o desmantelamento da União Europeia, o seu homólogo russo agradece. Para cumprir os seus objectivos, Putin precisa de dividir a Europa mas também a aliança transatlântica. Trump dá-lhe uma preciosa ajuda. Quer uma nova ordem internacional assente na mera relação de forças. A ideia não desagrada a Trump, apesar dos limites que a democracia americana lhe impõe. A sua política externa assenta em dois princípios: um poder militar que ninguém está em condições de igualar; uma economia da qual o mundo ainda está dependente.

Putin não tem qualquer limite ao seu poder. O nacionalismo agressivo que ofereceu aos russos para mobilizá-los contra os “inimigos externos” continua a funcionar. A repressão selectiva contra os opositores ou o domínio total dos meios de comunicação de massa permitem consolidar o seu poder. A grande questão que hoje se coloca é saber o que quer exactamente. O maior receio das chancelarias ocidentais é que Trump esteja disposto a fazer concessões a troco de mais um grande espectáculo. Que concessões? Com que consequências? Em Paris, Berlim ou Londres o tempo é de roer as unhas. Mesmo em Washington, os meios ligados à política internacional e um número significativo de congressistas republicanos não estão preparados para perder a NATO e apaziguar a Rússia. O Senado aprovou na semana passada, por 97 votos a favor e dois contra, uma resolução que reafirma o apoio dos EUA à NATO.

A crise ucraniana

Putin fez um cálculo errado quando, em 2014, resolveu interferir directamente na Ucrânia, ocupando e desestabilizando a sua parte leste e anexando a Crimeia, em total violação das leis internacionais. Apostou em que a Europa se dividiria perante o facto consumado. Enganou-se. Angela Merkel liderou a resposta com uma firmeza de que não estava à espera, arrastando consigo os seus parceiros da União. Fê-lo em total consonância com Barack Obama. As sanções mantêm-se até hoje, na Europa e nos Estados Unidos, onde chegaram a ser endurecidas.

Putin tem agora a sua grande oportunidade para erguer-se à altura da única superpotência que resta, por cima das democracias europeias.

Para a Europa, além do terrorismo e da desestabilização das suas fronteiras, do Norte de África ao Médio Oriente, a ameaça mais séria à sua segurança vem de Leste e chama-se Rússia. A crise ucraniana, a ocupação de parte da Geórgia (2008), que dura até hoje, as constantes interferências nos países da Europa central e de leste que estiveram sujeito ao domínio soviético, a ameaça velada aos membros da União e da NATO que já foram parte da União Soviética depois da II Guerra (os Bálticos) e onde ainda vivem minorias russas importantes, criam uma tensão permanente.

A célebre frase de Trump durante a cimeira do G7 sobre a Crimeia, considerando que era parte da Rússia, até porque “a grande maioria dos seus habitantes fala russo”, fez tocar todas as campainhas de alarme. O tema estará inevitavelmente na agenda de Helsínquia e muitos analistas interrogam-se sobre se Trump estaria disposto a reconhecer a Crimeia como parte da Rússia, se Putin deixar de intervir na Ucrânia ou avançar com a proposta de uma força de intermediação da ONU. Para o Kremlin, seria uma vitória importante. Até hoje, nem meia dúzia de países da ONU reconhecem a ocupação.

Trump quer obrigar o Irão a negociar

Há outros assuntos para os dois presidentes abordarem. A situação na Síria é um deles, apesar do facto consumado da sobrevivência do regime de Damasco, graças ao apoio da Rússia. Deraa, o último reduto das forças de resistência, acaba de cair sem banho de sangue, cumprindo o cessar-fogo assinado a 6 de Julho, mas depois de duas semanas de intensos bombardeamentos da aviação russa.

Para o Presidente americano, mais do que a Síria, a questão importante é o Irão. Quer provar que a estratégia do “quanto pior melhor”, já utilizada por George W. Bush sem resultado, é a melhor maneira de levar o regime à mesa das negociações. Conta com o efeito da reposição das sanções, não apenas as directas, mas as que afectam as empresas que continuam a fazer negócios no Irão, animadas pelo acordo nuclear, e a comprar-lhe o petróleo. Putin manteve o alinhamento com os países europeus que assinaram o acordo nuclear. Não se sabe o que poderá ceder ao seu homólogo. Mas não foi certamente por acaso que recebeu em Moscovo nos últimos dias o primeiro-ministro israelita, Benjamim Netanyahu, e o principal conselheiro do líder supremo do Irão Ayatollah Khamenei. Quer desempenhar um papel.

Controlar a proliferação?

Resta a redução mútua e o controlo das armas nucleares. Putin e Trump podem retomar as negociações dos tratados de limitação dos respectivos arsenais nucleares, firmados depois da Guerra Fria, ou mesmo antes. A fricção constante na relação entre os dois países mantém bloqueada a renovação de alguns desses tratados. Será possível? Trump admitiu vagamente que sim. Também aqui os interesses europeus estão em causa. A Rússia promete retirar os mísseis com ogivas nucleares de médio alcance que mantém próximo das fronteiras da NATO, se os EUA retirarem os seus do território europeu. A Europa ficaria desprovida da “dissuasão nuclear” com que os Estados Unidos continuam a protegê-la. Nem Trump se atreveria a ir tão longe, embora, com ele, nunca se saiba.

Kim Jong-un versão Putin?

Há um antecedente que não é propriamente animador. Quando Donald Trump deu a sua conferência de imprensa em Singapura, depois do encontro inédito com o líder norte-coreano, os analistas foram confrontados com duas realidades contraditórias. Por um lado, o Presidente americano descreveu a cimeira como uma grande vitória, que só ele poderia ter conseguido, comparando-a com os anteriores fracassos dos seus antecessores. A desnuclearização total estava garantida. Ao mesmo tempo, o comunicado final era curto e vago, sem calendários ou meios de verificação.

A capa da Economist fazia o resumo: “Kim Jong won”. Já houve uma série de desentendimentos sobre a aplicação do acordo. Até que ponto o espectáculo orquestrado por Trump é pura ficção, é a pergunta que muita gente começa a fazer.

Não é propriamente o diálogo com Putin que incomoda a Europa. “Os europeus compreendem a necessidade de se sentarem à mesa com o líder russo para um diálogo difícil sobre questões estratégicas”, escreve Carl Bildt no European Council on Foreign Relations. “Mas se Trump utilizar o guião de Singapura, ficarão muito preocupados”.

Com Vladimir Putin, a escala é outra e os desafios são diferentes. Mas a questão é a mesma: o que cederá Trump a Putin para ter direito a mais uma vitória? Os analistas referem que o perigo está no facto de ser um encontro a sós. O guião do Presidente é imprevisível. Como foi na cimeira da NATO e, depois, na breve visita ao Reino Unido, na sexta-feira. Ninguém esperava as granadas que ele lançou sem aviso prévio num sítio e no outro. Em Helsínquia, haverá provavelmente mais sorrisos.

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