A reforma da floresta não pode ser contra as pessoas

Sem uma intervenção pública forte que envolva as autarquias locais a olhar de forma diferente para a floresta, a reforma não será possível.

Em Portugal existem mais de 14 milhões de prédios rústicos, com e sem dono conhecido. Uma parte muito significativa desses prédios não gera qualquer rendimento aos seus proprietários. Alguns deles, no quadro da economia e do património das famílias, são autênticos passivos. O valor de mercado de alguns deles é absolutamente insignificante e, mesmo assim, não há procura para eles, pelas mais diversas razões. Uma parte paga impostos (IMI), a outra não, independentemente do rendimento que eles geram.

Nos concelhos que foram assolados pelos incêndios de 2003 e de 2017, só os proprietários que plantaram eucaliptos e a tempo de serem cortados antes destes últimos incêndios e foram efetivamente cortados obtiveram rendimentos. Os outros ou tiveram prejuízos ou nada lhes aconteceu.

No território nacional existem mais de 20 mil lugares (aldeias e vilas) com população com residência habitual com menos de 500 habitantes. Mais de 70% terá menos de 200 habitantes e cerca de metade terá menos de 100 habitantes permanentes. Salvo raras exceções, todos eles estão marcados pelo forte e, sobretudo, muito forte envelhecimento e pelas migrações. Numa parte muito significativa já não residem pessoas permanentemente com menos de 50 anos. Foi isto que se viu nas reportagens televisivas que acompanharam os incêndios de 2017.

Em Portugal, 48% das famílias não pagaram imposto sobre o rendimento (IRS) porque se encontravam isentas. Das que pagaram IRS, cerca de 2,3 milhões de famílias declararam rendimentos inferiores a €10 mil (menos de €900/mês), e cerca de 1,4 milhões de famílias declaram rendimentos brutos entre os €10 mil e €19 mil (menos de €1600/mês). Quantas destas famílias são proprietárias de terrenos rústicos que não geram rendimentos? Não se sabe mas serão certamente muitas.

A limpeza dos terrenos florestais em termos gerais deverá realizar-se pelo menos de dois em dois anos e haverá até situações em que terá que ser todos os anos. Os proprietários extremamente envelhecidos, mesmo que queiram, já não o podem fazer por si próprios e terão que recorrer a mão-de-obra externa se ela existir. O trabalho é duro e mal pago e, por isso, não é apetecível. As poucas associações florestais e os sapadores sabem disso. Os poucos que trabalham nesta atividade não têm mãos a medir. Por vezes, aqueles que decidem recorrer a estas entidades ou a terceiros para limpar os terrenos rústicos vão para a fila de espera como para ir ao médico. Não há capacidade instalada para limpar tantos terrenos.

Limpar um terreno florestal, em média, não custa menos de €250/hectares, todos os dois/três anos, admitindo que quem faz o trabalho não aufere mais que o salário mínimo nacional. Em algumas regiões os terrenos rústicos para floresta encontram-se no mercado a €0,1/m2 (dez cêntimos o metro quadrado), ou seja, €1000/hectare. Mas, nem mesmo assim, alguns encontram comprador interessado.

Há uma corrente de opinião, que envolve diversos setores da sociedade, que está convicta de que identificando no papel os proprietários dos terrenos se poderá obrigar a limpar os seus terrenos tal como está previsto na lei e, assim, evitar os incêndios florestais.

Em nossa opinião, pelo que acima foi dito tal não é possível, porque isso pressupõe presença de população habilitada com capacidade física, material e económica para o efeito; e ela não existe. Mas também porque pressupõe uma capacidade de acompanhamento, fiscalização e de intervenção pública que não existe. Uma reforma da floresta centrada nestes princípios está condenada ao fracasso e o país continuará a arder.

A reforma da floresta não se faz apenas no papel e deverá fazer uso de todo o tipo de instrumentos disponíveis e a criar, informacionais, jurídicos, administrativos, financeiros, materiais e humanos; dissuasores e incentivadores.

Sem uma intervenção pública forte que envolva e persuada as autarquias locais a olhar de forma diferente para a floresta e a investir na floresta, direta e indiretamente, tal não será possível. Foi isto que de alguma forma se intentou na última reforma da Lei das Finanças Locais, mas não foi possível.

Mas a reforma da floresta tem que ser feita com as pessoas e não contra elas.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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