Ataque americano expõe as divisões alimentadas pela guerra da Síria

A resposta de Donald Trump ao ataque químico de Assad motivou o aplauso dos aliados ocidentais e o protesto dos apoiantes do regime de Damasco.

Entre os vários cenários possíveis, apresentados pelo chefe do Pentágono, general James Mattis, para uma operação militar de retaliação contra o regime sírio pelo ataque químico à cidade de Khan Sheikhoun, o Presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, optou pelo mais prudente e o mais limitado. Às 3h40 (0h40, em Lisboa), as forças norte-americanas dispararam 59 mísseis Tomahawk para a base aérea de Al-Shayrat, perto de Homs — a primeira acção directa contra um Governo árabe desde 2011, quando o Presidente Barack Obama deu ordem para a intervenção militar na Líbia.

O ataque representa “uma flagrante violação da carta das Nações Unidas e das normas e leis internacionais”, denunciou o Governo do Presidente Bashar al-Assad e os seus aliados da Rússia e do Irão, que imediatamente convocaram o Conselho de Segurança das Nações Unidas para uma sessão urgente face à escalada no conflito. O secretário-geral, António Guterres, apelou à contenção de todas as partes envolvidas, lembrando o sofrimento intolerável da população síria.

Em Moscovo, o Presidente russo Vladimir Putin classificou o ataque como “uma agressão contra um Estado soberano” que deixa seriamente em risco a cooperação entre os dois países no combate ao terrorismo: o acordo bilateral de segurança aérea na Síria, assinado entre os EUA e a Rússia em 2015, foi suspenso, e os avançados sistemas de defesa aérea S-400 foram mobilizados para proteger as bases russas na Síria, incluindo o porto de Tartus, para onde já seguiu um dos navios da frota do Mar Negro, armado com mísseis cruzeiro.

Mais tarde, o primeiro-ministro, Dimitri Medvedev, escrevia no Facebook que os EUA “arruinaram completamente” as suas relações com a Rússia. “Depois disto, a desconfiança é absoluta. São boas notícias para os terroristas”, acrescentou. O ministro dos Negócios Estrangeiros, Serguei Lavrov, salientou o “pretexto completamente inventado” para justificar o ataque, comparando o caso à invasão do Iraque em 2003, “sem a aprovação do Conselho de Segurança e numa grave violação da lei internacional”. “Dessa vez, pelo menos, ainda tentaram apresentar provas materiais”, acrescentou, referindo-se ao alegado arsenal de armas de destruição maciça de Saddam Hussein.

A base aérea atingida pelos mísseis norte-americanos é partilhada pela Força Aérea da Síria e a aviação russa, que desde o final de 2015 participa nas operações do Governo de Assad para expulsar e derrotar as organizações terroristas no seu país. Na sua declaração ao país, a anunciar o lançamento do ataque, Donald Trump disse ter sido dali que levantaram os aviões que lançaram gás sarin sobre Khan Sheikhoun, “matando cruelmente homens, mulheres, crianças indefesas. Lindos bebés morreram neste ataque bárbaro.”

Segundo o Observatório Sírio para os Direitos Humanos, a entrada da Rússia na guerra obrigou a uma expansão da base, com a construção de novas pistas e estruturas de apoio. Mas como garantiu ao The New York Times um dirigente do Pentágono, “não havia aviões russos na base na hora do ataque, e nenhum dos mísseis atingiu os pavilhões russos” — o Exército russo foi notificado com antecedência através de um canal militar seguro, tal como a NATO e outros governos aliados.

O Governo de Damasco disse que o bombardeamento dos EUA matou sete pessoas. A informação não foi confirmada pelo departamento de Defesa norte-americano, que garantiu terem sido “tomadas todas as precauções para executar o ataque com um risco mínimo” para o pessoal na base aérea ou a população civil nas imediações. Os alvos atingidos pelos Tomahawks americanos estavam identificados: eram aviões, hangares e bunkers, paióis de munições, depósitos de combustível e ainda sistemas de radar e de defesa aérea, tudo pertencente às forças militares sírias, informou. Segundo a Rússia, 36 mísseis caíram fora da base.

A acção-surpresa mereceu o aplauso das potências ocidentais, dos países com fronteiras com a Síria, Turquia e Israel, e da coligação de grupos sírios de oposição ao regime de Bashar al-Assad. “Esperemos que este seja o momento da viragem nesta guerra de mais de seis anos que já fez quase 500 mil mortos”, disse à Associated Press o comandante de um dos grupos rebeldes apoiados pelos EUA, Jamil al-Saleh.

A NATO e a União Europeia congratularam-se com a resposta americana ao ataque de Assad e reafirmaram o seu interesse em cooperar com Washington para “pôr fim à brutalidade na Síria”. Num comunicado conjunto, a chanceler da Alemanha, Angela Merkel, e o Presidente da França, François Hollande, já deram o mote para uma acção diplomática complementar, sublinhando a urgência de cumprir a resolução 2254 do Conselho de Segurança que apela à transição política no país.

O mundo árabe sunita também elogiou a acção decidida dos Estados Unidos contra os seus adversários Síria, Irão e Rússia. A Arábia Saudita manifestou o seu “total apoio” à “decisão corajosa” do Presidente norte-americano — tal como o Egipto, a Jordânia e os Emirados Árabes Unidos. “Para os aliados do Golfo, esta é a América que é vista como séria, credível e de confiança. A mensagem, para a região, foi muito poderosa”, notou ao Financial Times o analista político Abdulkhaleq Abdulla, a partir do Dubai.

O antigo conselheiro nacional de segurança de Israel, Yaakov Amidror, concordava que após a operação norte-americana os grupos que combatem pelo regime sírio, das Guardas Revolucionárias iranianas à milícia libanesa do Hezbollah, poderão ensaiar uma retirada. O primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, esperou que “a mensagem de determinação contra as acções horríficas de Assad ressoe em Damasco mas também em Teerão e Pyongyang”.

“Estamos preparados para fazer mais, mas esperamos que não seja necessário”, frisou a embaixadora dos EUA na ONU, Nikki Haley. No entanto, notavam vários protagonistas políticos e analistas da região, há um importante elemento em falta na resposta norte-americana contra Assad: um plano credível — e exequível — para a sua remoção do poder e para a reconstrução do país. Bem como uma solução para a maior crise de refugiados desde a Segunda Guerra Mundial.

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