Soberanistas e integracionistas: a Grécia e a questão constitucional na Europa

A questão central que a Europa enfrenta não é de natureza financeira – mais ou menos austeridade. A questão central é de natureza política e constitucional – mais ou menos Europa.

Tenho ouvido dizer que o problema que a Grécia colocou à União Europeia decorre de os gregos não quererem cumprir os compromissos assumidos perante a União Europeia. Mas essa é uma abordagem insuficiente.

É que o mais forte compromisso assumido pelos gregos – ou pelos portugueses, ou pelos irlandeses – não foi com o Programa de Ajustamento. Este resultou de um acordo entre governos que, aliás, foi sendo alterado ao longo dos anos. O compromisso mais forte é com o Tratado da União Europeia, através do qual os Estados transferiram para a União a sua soberania monetária e cambial, e com o Tratado Orçamental, pelo qual limitaram os seus poderes orçamentais. Por força destes compromissos, os Estados que integram a União Monetária privaram-se dos instrumentos tradicionais de gestão de crises económicas. Estes compromissos, ao contrário dos Programas de Ajustamento, resultam de tratados internacionais que só podem ser alterados através da ratificação por todos os Estados Membros.

Por isso, nenhum Estado da Zona Euro pode autonomamente escolher o caminho para lidar com choques económicos a que sejam sujeitos: tem de ser a União Europeia a atuar. No entanto, a arquitetura institucional da Europa dificulta a resposta da União, que é uma construção incompleta que não tem todos os poderes tradicionais dos Estados: não dispõe de recursos financeiros e poderes fiscais próprios e mesmo o BCE tem limitações à sua atuação em comparação com os congéneres americano ou inglês.

Assim, confrontada com a crise, a Europa lidou com ela na esfera intergovernamental. As decisões essenciais têm sido tomadas pelos governos europeus, sendo normal que os chefes de governo atuem tendo em conta os interesses do seu eleitorado nacional antes do interesse comum da União e que o peso maior seja dos Estados mais poderosos – em particular, da Alemanha – sem cujos recursos não é possível adotar as medidas que se impõem.

Podemos por isso divergir sobre as origens da crise – efeitos assimétricos de uma zona de câmbios fixos; políticas orçamentais irresponsáveis; défice de competitividade; crescimento do crédito e das atividades especulativas – ou sobre a melhor forma de sairmos dela – corte da despesa e da dívida públicas? reformas estruturais no lado da oferta de bens, serviços e emprego? maior regulação bancária e resolução de crises bancárias sem contaminação das finanças públicas? redistribuição de recursos a nível europeu? Mas independentemente dessas divergências, todos podemos constatar que, neste momento, nenhuma entidade política detém todos os instrumentos para, por si só, aplicar qualquer dessas terapêuticas. Esses instrumentos existem e podem ser utilizados com sucesso: basta constatar que outros países conseguiram sair da crise mais depressa, independentemente da orientação política dos seus governos – pense-se nos Estados Unidos, sob liderança democrata, ou no Reino Unido, sob liderança conservadora. Mas, na zona euro, o quadro institucional determinou uma resposta tardia e insuficiente à crise e agravou a assimetria dos seus efeitos. E se o preço mais elevado tem sido pago pelas economias mais débeis e menos competitivas, não é menos certo que os efeitos da gestão da crise se fazem sentir por toda a Europa, com a estagnação do crescimento, a deflação e o crescimento do desemprego.

Neste cenário, é de esperar que os eleitores estejam frustrados. A desagregação dos sistemas partidários e o aparecimento de novas forças políticas exprime o desamparo dos eleitores, que interpretam a situação da zona euro como consequência da incapacidade dos partidos tradicionais. Isso sente-se nos países mais atingidos pela crise, como a Grécia, mas chega já ao eleitorado dos maiores países, como a França ou a Espanha.

Perante esta situação, duas alternativas se podem colocar. A primeira consiste na recusa das estruturas supranacionais, reclamando a recuperação das parcelas de soberania transferidas para a União. É o tema comum dos que defendem a saída do Euro, a recusa de pagamento da dívida, a denúncia do Tratado Orçamental, ou, noutro plano, o fim da livre circulação de pessoas ou a saída da União Europeia. Estas posições “soberanistas” sustentam que a recuperação da soberania permitirá aos Estados aplicar políticas autónomas de gestão da crise: desvalorização competitiva da moeda; relançamento da procura por aumento da despesa pública; proteção da concorrência externa. Estas posições parecem ao menos oferecer uma alternativa à passividade das instituições europeias e nacionais e não é por acaso que os partidos que as defendem – por muito radicais que parecessem há uns anos atrás – têm crescido eleitoralmente.

Existe, porém, uma resposta diferente – a via “integracionista”, que consiste em acentuar os mecanismos comuns de resposta às crises e de relançamento da economia. Se a Europa souber oferecer uma resposta supranacional aos problemas atuais poderá demonstrar que existe uma alternativa aos movimentos soberanistas, que seja coerente com a promessa de paz e prosperidade que a Europa sempre representou. Essa resposta supranacional implica que a União esteja disponível para se dotar de ferramentas adicionais àquelas que já detém – política fiscal e orçamental europeia, seguro de desemprego e segurança social integradas, etc., gestão de transferências de recursos dentro da União ou gestão das dívidas públicas excessivas.

Aliás, as políticas mais eficazes de combate à crise foram tomadas pelas instituições comuns – o BCE à cabeça – ou foram já no sentido de maior integração – como a União Bancária. Mais que isso, a escala e a natureza dos problemas que os povos europeus enfrentam no nosso mundo global tornam evidente que a resposta tem de ser mais Europa, e não o regresso às soberanias nacionais. Mas a inação pode agravar o descontentamento e o crescimento das posições soberanistas, com risco de desagregação da União e empobrecimento de todos.

E, por isso, a questão central que a Europa enfrenta não é de natureza financeira – mais ou menos austeridade. A questão central é, antes do mais, de natureza política e constitucional – mais ou menos Europa. E todos os governos europeus devem preparar-se para lhe responder.

A Grécia e o Euro: uma união indissolúvel

Para se entender a natureza do que está em jogo, importa considerar as regras dos Tratados. Segundo estes, o Euro é a moeda da União Europeia. Os Estados-membros devem decidir se querem aderir ao Euro, e cumprir certas condições para o efeito; mas uma vez que passem a utilizá-lo, a decisão é irreversível. A União Europeia e os outros Estados não podem “expulsar” um país do Euro. De igual modo, um Estado não pode decidir deixar de usar o Euro e adotar moeda própria, porque não tem já essa competência. Poderá decidir sair da União Europeia – o direito de secessão é reconhecido nos Tratados – mas não manter-se na União e sair do Euro.

É certo que, perante a carência de meios financeiros, um Estado pode pretender voltar a usar moeda própria e imprimir dinheiro por conta própria. É isso que sustentam alguns adeptos do “Grexit”: se a Grécia se recusar a cumprir as medidas já acordadas ver-se-á privada de recursos para pagar salários e pensões ou para financiar os seus bancos, e não terá outro recurso senão pedir para sair do Euro. É uma ideia absurda e perigosa. É absurda, em primeiro lugar, porque assume que a União Europeia poderia permitir que um dos seus membros, em nome de quem passou a gerir em comum a política monetária, entrasse em colapso social e económico para o forçar a mendigar a saída da União Monetária. E é absurda, além do mais, porque numa União regulada pelo Direito, a subversão das regras constitucionais não pode ser solução para um problema financeiro. Seria como se a Madeira quisesse usar moeda própria para pagar salários em moeda madeirense, ou se a Catalunha deixasse de pagar impostos ao Estado Espanhol. No quadro dos Tratados, portanto, a saída para a crise não pode passar pela saída da Grécia do Euro.

Para que a saída do Euro fosse possível teriam de ser alterados os Tratados. E, como se sabe, os Tratados só podem ser alterados por unanimidade dos Estados-membros – incluindo da própria Grécia, ou da Espanha, de Portugal, ou da Irlanda (neste caso por referendo). Nessa votação, Portugal e a Irlanda valem tanto como a Alemanha. Será politicamente possível que o Parlamento Português, ou as Cortes Espanholas, votem uma alteração ao Tratado que permita que um Estado saia do Euro? Podemos conceber que a Europa entenda ser politicamente mais viável alterar os Tratados para oferecer aos Estados a faculdade de se desvincularem da União Monetária, em vez de renegociar um programa que resulta de um acordo entre Governos? E que argumento se dará depois ao Reino Unido quando quiser alterar o Tratado para limitar a livre circulação de pessoas?

E a saída do Euro não evitaria o incumprimento da dívida contraída pela Grécia em euros – pelo contrário, tornaria inevitável esse incumprimento, porque o valor em moeda grega (desvalorizada) da dívida contraída em euros seria muito superior. E provavelmente levaria a um êxodo em massa dos gregos fugidos à miséria para a Itália, ou Áustria, ou Alemanha. E que mensagem se passaria para os demais europeus, e para o mundo, sobre a solidez da Europa? Que sinal se daria aos eleitores espanhóis, ou franceses: que a saída do Euro permite o perdão da dívida? É essa a “vacina” que se pretende? O “Grexit” é, pois, uma medida perigosa, pois inevitavelmente levará à desagregação da União Europeia.

Este perigo não impressiona os soberanistas, para quem o regresso às diferenças nacionais constituirá um resultado positivo. É por isso que, do lado dos soberanistas, tanto encontramos Francisco Louçã, para quem a saída do Euro permitirá a aplicação de uma “política de esquerda”, como Wolfgang Schäuble, para quem a saída da Grécia permitirá converter a União numa comunidade de países economicamente e culturalmente homogéneos, partilhando os mesmos valores de gestão da coisa pública, como, num plano diferente, o UKIP, que pretende restringir a liberdade de circulação de pessoas, ou Marine Le Pen, que deseja deixar de estar vinculada pelas regras europeias para poder impor em França regras discriminatórias dos não franceses...

Pelo contrário, do lado dos integracionistas, encontramos todos aqueles que reconhecem que a União Europeia é uma comunidade de direitos e deveres, assente no Direito e na democracia representativa, que protege os direitos e interesses dos cidadãos, que reconhece a diversidade dos povos europeus e a possibilidade de cada Estado escolher o modelo de organização que defende, no quadro dos deveres assumidos em comum, e que se deve empenhar solidariamente na coesão económica e social e no crescimento económico e bem-estar social. Do lado dos integracionistas esteve Portugal em 1976, quando pediu a adesão à Europa para fortalecer a muito recente democracia, ou os Estados bálticos, que pediram a adesão ao Euro para assegurar a sua independência do gigante russo, ou Helmut Kohl, que percebeu que o lugar da Alemanha reunificada era no quadro de uma União Europeia reforçada no plano político, económico e monetário.

A União Europeia não é hoje uma causa popular. Nenhum líder europeu hoje em dia fala pela Europa ou se atreve a reconhecer que no mundo atual, com a sua concorrência económica e ameaças à segurança, só uma Europa mais unida pode oferecer o quadro político que traga paz e prosperidade aos povos europeus. Ainda assim, a necessidade de a Europa reagir aos resultados das eleições gregas vai obrigar a colocar os governos a escolher de que lado se colocam na questão política central dos próximos tempos – soberanistas ou integracionistas?

Por isso, os próximos tempos serão um momento decisivo nesta discussão. Parece-me seguro que se os parceiros europeus recusarem a discussão que os gregos solicitam poderão empurrá-los para a deriva soberanista, e incentivar a mesma reação noutros países.

Os partidos que construíram a Europa – em particular, o Partido Popular Europeu e os Socialistas Europeus – têm a responsabilidade principal na resposta à questão grega. Exigir a realização de reformas que possam atacar as debilidades estruturais dos países, ao nível institucional e económico, sim; mas garantindo do mesmo passo que a União Europeia dá uma resposta comum e solidária às aspirações de retoma do crescimento e do bem-estar.

Advogado

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