A bandeira nacional: das varandas dos bairros à lapela de Passos Coelho

Quando Scolari, no Euro 2004, convenceu o país a pôr uma bandeira em cada varanda, do Minho ao Algarve, contribuiu para democratizar o símbolo da nação, que o Governo de Passos Coelho parece querer agora “privatizar”, diz o ex-ministro Nuno Severiano Teixeira.

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Enric Vives-Rubio

Simbolicamente lançado neste feriado do 10 de Junho, Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, o livro Heróis do Mar: História dos Símbolos Nacionais (Esfera do Livro), do historiador e ex-ministro Nuno Severiano Teixeira, relata o processo, não isento de polémicas, que levou à consolidação dos símbolos nacionais que herdámos da I República: a bandeira verde e vermelha e o hino A Portuguesa.

Um tema que faz sentido abordar neste momento, disse o autor ao PÚBLICO, já que “a relação dos portugueses com os símbolos nacionais sofreu uma alteração importante ao longo dos últimos anos”, sobretudo a partir da campanha do Euro 2004, que Severiano Teixeira, ministro dos governos socialistas de António Guterres e José Sócrates, vê como “um momento de viragem” na democratização e na apropriação popular da bandeira.  

Desde a sua adopção, na I República, passando pelo Estado Novo, e chegando às primeiras décadas de democracia, “a relação dos portugueses com os símbolos foi sempre de alguma distância e solenidade”, observa o autor. Quando os portugueses, entusiasmados com a prestação da selecção nacional de futebol no Euro 2004, cobriram de bandeiras nacionais as janelas e varandas do país, o que aconteceu, defende Severiano Teixeira, foi a substituição de “um nacionalismo formal, vindo de cima”, que resistira mesmo ao 25 de Abril de 1974, por “um nacionalismo informal, em que os símbolos também vêm de baixo, da sociedade civil, e os cidadãos se apropriam individualmente deles”.<_o3a_p>

Um processo que vinha de trás, reconhece o autor, lembrando que “já houve algum uso de bandeiras no Campeonato do Mundo de 1966”, e apontando ainda as medalhas olímpicas de atletas portugueses como momentos de popularização da bandeira e do hino. Mas estas manifestações, acrescenta, “nem de perto nem de longe tiveram a dimensão espontânea, popular, de massas, que assumiriam em 2004”. E não deixa de ser curioso que, a aceitar-se esta tese, o mérito da legitimação popular da bandeira nacional tenha de ser em boa medida creditado a um cidadão estrangeiro, o treinador brasileiro Luiz Felipe Scolari, que pediu expressamente aos portugueses que apoiassem a selecção pondo bandeiras de Portugal nas janelas das suas casas.<_o3a_p>

Severiano Teixeira faz uma leitura positiva desta “mudança recente, mas já consolidada”, e lamenta que o actual Governo pareça querer voltar atrás, lidando com os símbolos nacionais de uma forma que lhe parece “ambígua” e “negativa”. Lembrando que todos os membros do Governo de Passos Coelho — e só eles, os ministros e secretários de Estado — receberam instruções para ostentarem, sempre que estivessem em funções, um pin com a bandeira nacional na lapela do casaco, Severiano Teixeira defende que esta orientação, aliás “rigorosamente cumprida”, sugere uma tentativa de “privatizar algo que já é de todos”.<_o3a_p>

Seria diferente, afirma, se a medida “tivesse sido acompanhada de uma campanha cívica de promoção da bandeira nacional”. Não o tendo sido, lamenta que, “num momento em que a bandeira nacional foi apropriada pela sociedade civil e por cada um dos portugueses, o Governo passe a usar o símbolo só para si”. <_o3a_p>

Não parece implausível que a ideia de pôr os membros do Governo a usar o pin tenha sobretudo pretendido passar a imagem de que os anteriores governos socialistas, alegadamente responsáveis por levar o país à bancarrota, tinham cedido o lugar a um executivo composto de genuínos patriotas. Mas nem por isso perde necessariamente pertinência a sugestão do autor de que esta restrição do uso da bandeira aos governantes parece basear-se na convicção de que o intérprete autorizado do patriotismo é o Estado. E embora Severiano Teixeira não o escreva no livro, nem tenha assumido essa comparação na conversa com o PÚBLICO, o leitor de Heróis do Mar pode facilmente ser tentado a associar esta sua crítica ao actual Governo às anteriores páginas em que explica como o Estado Novo procurou deliberadamente solenizar e sacralizar a bandeira e o hino. <_o3a_p>

Três horas de República
Mas as considerações sobre a política de comunicação de Passos Coelho são apenas um aparte polémico num livro que exigiu a Severiano Teixeira “uma investigação de quatro ou cinco anos” e que se propõe historiar todo o processo de consolidação dos símbolos nacionais, desde a I República ao presente. Ou mais precisamente, desde a malograda intentona republicana de 31 de Janeiro de 1891, no Porto, “momento histórico para a simbologia da República”, diz Severiano Teixeira, e que vai ditar em definitivo “a inscrição do verde e do vermelho na ideologia republicana”, ao mesmo tempo que assinala “a republicanização de um hino que nascera como uma marcha patriótica contra o Ultimato inglês”: A Portuguesa, com música de Alfredo Keil e letra de Henrique Lopes de Mendonça.

Uma das conclusões mais interessantes a retirar deste livro é justamente a de que a bandeira e o hino tiveram de algum modo evoluções simétricas, com a primeira começando por ser um símbolo muito identificado com a República, e que só lentamente conquistou estatuto nacional, e o segundo, nascido de baixo, da indignação popular contra o Ultimato britânico de 1890, a ser assumido primeiro pelo movimento republicano e depois pelo Estado, após a queda da monarquia. <_o3a_p>

Vinte anos antes do 5 de Outubro de 1910, a bandeira verde-rubra e A Portuguesa vão cruzar-se na manhã do dia 31 de Janeiro de 1891, no Porto, quando os militares amotinados, os dirigentes civis da intentona e a população que se foi juntando ao cortejo marcharam ao som d’A Portuguesa rumo aos Paços do Concelho, a cuja varanda proclamariam a República, desfraldando a bandeira do Centro Democrático Federal 15 de Novembro, vermelha com um círculo verde ao centro. <_o3a_p>

“Por escassas horas, entre as 6h e as 9h, houve República em Portugal”, diz Severiano Teixeira. A importância simbólica do 31 de Janeiro ajuda a explicar que a I República venha depois a adoptar oficialmente a bandeira verde e vermelha e A Portuguesa, numa continuidade a que não faltam, aliás, dimensões contraditórias, já que muitos dos principais mentores do 31 de Janeiro, partidários de um republicanismo iberista e federal, não vão reconhecer-se no projecto político de 1910.<_o3a_p>

A polémica das cores
Após a implantação da República, a decisão de substituir a bandeira azul e branca da monarquia constitucional pela bandeira verde e vermelha não foi tomada sem grandes polémicas, que envolveram alguns dos mais respeitados intelectuais da época, como o poeta Guerra Junqueiro ou o filósofo Sampaio Bruno, ambos republicanos e ambos partidários de que se mantivessem as cores tradicionais.

O leitor deste Heróis do Mar encontrará reproduções de dezenas de projectos diferentes de bandeira nacional apresentados após o 5 de Outubro. Entre os que propuseram versões azuis e brancas, ainda que naturalmente despojadas da coroa da dinastia de Bragança, contavam-se Junqueiro e Bruno, mas também, por exemplo, o autor da letra d’A Portuguesa, Henrique Lopes de Mendonça.

Mas também para a versão verde e vermelha foram propostas diversas alternativas, e houve ainda os que tentaram soluções de compromisso, misturando as cores tradicionais com as novas cores republicanas.<_o3a_p>

“Os que tinham uma concepção mais moderada do republicanismo queriam manter o azul e branco, e os herdeiros da tradição mais radical, democrática, positivista, queriam o verde e vermelho”, resume Severiano Teixeira. Ganharam os segundos, fazendo aprovar em 1911 uma bandeira muito semelhante à que os homens de Machado dos Santos tinham empunhado na Rotunda e que depois fora hasteada pelos vencedores do 5 de Outubro na Câmara de Lisboa e no Castelo de S. Jorge. Mesmo a esfera armilar já lá estava, ainda que decorada com alguns símbolos maçónicos que a bandeira nacional prudentemente viria a dispensar. <_o3a_p>

Severiano Teixeira entronca o vermelho da bandeira “numa tradição democrática e popular que vinha da Comuna de Paris, de 1870, e das revoluções do século XIX”, e associa o verde à matriz positivista que norteava o novo regime republicano. <_o3a_p>

À esfera armilar e ao escudo das quinas cabia garantir uma ligação à história do país, cujos momentos mais épicos —  da fundação aos Descobrimentos ou à reconquista da independência em 1640 — tanto a I República, por muito crítica que fosse da dinastia de Bragança, como o Estado Novo iriam exaltar. <_o3a_p>

Mas se a facção mais radical dos republicanos conseguiu impor a bandeira verde-rubra, esta continuou a ser muito contestada, e só a participação portuguesa na I Guerra iria verdadeiramente legitimá-la e torná-la nacional, defende Severiano Teixeira. De símbolo imposto pelo novo regime, passava a ser a bandeira sob a qual tinham morrido os soldados portugueses na Flandres. <_o3a_p>

E quando a I República deu lugar ao que veio a ser o Estado Novo, bandeira e hino mantiveram-se incólumes, sem sofrer a menor correcção ou acrescento. E sobreviveram também ao 25 de Abril, apesar de a sua apropriação pela ditadura ter dificultado a tarefa ao novo regime democrático, que “nos seus primeiros tempos”, escreve Severiano Teixeira, “não soube bem o que fazer com os símbolos nacionais” e absteve-se de os cultivar activamente. <_o3a_p>

Com a integração europeia, o autor acha que “a Europa veio preencher o lugar do império no imaginário nacional” e que os portugueses “assumem hoje com naturalidade a sua dupla identidade portuguesa e europeia”, respectivamente simbolizadas pela bandeira verde e vermelha e pela bandeira azul com doze estrelas douradas.

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