Uma viagem alucinada

O segundo livro de Flann O’Brien editado em Portugal volta a fazer confluir géneros numa paródia literária

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O estilo delirante e inclassificável de Flann O’Brien custou-lhe uma aclamação tardia, e só depois de caucionada por Joyce e Greene

Quem leu Uma Caneca Cheia de Tinta, que a Cavalo de Ferro publicou em Portugal em 2013, sabe da excelência imaginativa e literária de Flann O’Brien (1911-1966) e não estranhará que se diga deste seu mais recente livro editado em português que é de uma delirante bizarria, desafiante, mais uma vez, das convenções que separam géneros literários. Escrito entre 1939 e 1940, O Terceiro Polícia foi recusado por muitos editores — que o consideraram demasiado inventivo, para lá do que se poderia considerar ficção, e mais próximo de um delírio criativo. Publicado apenas em 1967, um ano após morte do escritor e quando o seu talento havia sido confirmado e sublinhado por nomes como James Joyce ou Graham Greene, seria então recebido com todo o entusiasmo que o autor suscitava.

Tal como Uma Caneca Cheia de TintaO Terceiro Polícia é um dos quatro romances que o escritor, jornalista e dramaturgo irlandês Brian O’Nolon assinou com o pseudónimo Flann O’Brien, e também mais um exemplar de humor e de metaficção. O livro começa com a descrição de um crime na Irlanda rural do início do século XX. O narrador, homem sem nome, regressa a casa depois de anos de ausência. Ficara órfão muito cedo e fora mandado estudar num colégio interno onde descobriu a obra de de Selby, um filósofo e cientista (inventado por O’Brien) com concepções extravagantes sobre o universo e a condição humana: “Eu devia ter uns dezasseis anos e era o dia sete de Março. Continuo a achar que esse dia foi o mais importante da minha vida e lembro-me dele mais prontamente do que do meu aniversário.” A partir dessa descoberta, parte para uma investigação tão privada quanto entusiástica da obra de de Selby e investe todo o seu tempo na leitura e na compilação obsessiva de dados e opiniões sobre o pensamento desse homem. Quando termina os estudos, aos 20 anos, volta às origens numa espécie de nebulosa mental, descrevendo episódios dominados pelo non-sense: “Num dos locais onde estive para alargar os meus horizontes, sofri, certa noite, um grave acidente. Parti a perna esquerda (ou, se preferirem, foi-me partida) em seis pontos diferentes e, quando fiquei de novo bom para seguir caminho, tinha uma perna de madeira, a esquerda.” Fora imediatamente antes do regresso, sabedor de que não iria dedicar-se à agricultura, como os outros esperavam de si, mas que iria “colar o seu nome ao de de Selby e escrever um livro, o Índice explicativo deselbiano, onde reuniria “todos os pontos de vista de todos os comentadores conhecidos, sobre todos os aspectos do pensador e do seu trabalho”. Termina-o tem uns 30 anos, dividindo então casa com John Divney, que diligentemente ficara a tomar conta da quinta e do bar dos pais do narrador. Será Divney a sugerir-lhe que assassinem o velho Phillip Mathers: com o dinheiro que ele transporta no seu “cofrezinho preto”, o narrador poderia finalmente publicar o livro. 

A narrativa é feita com o seu autor a ter consciência de uma espécie de doença de anonimato que tomou conta não apenas da sua escrita como da sua vida e que explica a ausência de nome. “Estava a reflectir acerca do meu nome e de como era torturante que o tivesse esquecido.” Estamos no campo da metaficção, por onde O’Brien sempre andou na sua escrita inspirada em James Joyce, que sempre assumiu como a sua grande referência literária. Essa amnésia permite-lhe adensar o mistério e aventurar-se por níveis de fantasia arriscados, desafiando a verosimilhança. Nada, no entanto, que belisque a qualidade ou a verdade literária deste livro. “Este confuso anonimato, que surge, subitamente, a meio da minha vida, deveria ser, no mínimo, alarmante, um sintoma agudo de que a mente se encontra em decadência. No entanto, a inexplicável excitação que eu sentia em relação ao que me rodeava parecia investir a situação tão-só com o genial interesse de uma boa piada.” 

O ambiente do romance — designação a que muitos críticos têm resistido devido às características pouco convencionais desta prosa — é de um negrume tão misterioso quanto insólito. A sucessão de episódios mais ou menos rocambolescos que se seguem ao crime inicial, cujo objectivo aparente é o de concretizar o sonho de divulgar o pensamento de de Selby, deixa atónico qualquer leitor mais prevenido. Ainda que prevenido à partida pela citação do pensador que O’Brien criou — de Selby — e que serve de epígrafe ao romance: “Sendo a existência humana uma alucinação que contém, em si mesma, as alucinações secundárias do dia e da noite (a última um estado insalubre de atmosfera devido ao desenvolvimento orgânico do ar negro), fica mal a qualquer homem sensato preocupar-se com a abordagem ilusória da alucinação suprema conhecida como morte.”

O que O’Brien faz aqui é uma paródia acerca do tempo e do modo como cada um de nós se relaciona com essa medida letal ou simbólica. É nesse jogo que cruza dimensões — vida e morte, por exemplo, ou noite e dia — em fronteiras pouco definidas. “A existência humana foi identificada por de Selby como ‘uma sucessão de experiências estáticas, todas elas infinitamente breves’ […]. A partir desta premissa, faz pouco caso da realidade ou verdade de qualquer progressão ou serialismo na vida, nega que o tempo possa passar enquanto tal, no sentido que lhe é reconhecido, e atribui à alucinação a sensação de progressão comummente experimentada, por exemplo, quando se viaja de um local para outro ou, até ao ‘viver’”. 

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