Uma paisagem desencantada

É no ensaísmo e no vasto campo das ciências humanas e sociais que a actual lógica editorial mais danos provocou, limitando assim o debate e a livre circulação de ideias.

Fotogaleria
Fotogaleria

A apresentação desta lista exige um preâmbulo: ela abrange não apenas o ensaio propriamente dito (que,como sabemos sempre se interrogou a si mesmo enquanto género e forma), mas o campo mais vasto dos livros de ciências humanas e sociais, incluindo a filosofia, a estética, a crítica literária e artística.

Por isso, só poderia resultar num conjunto muito ecléctico, à medida das diferentes proveniências disciplinares das pessoas que para ele contribuíram. Se o saber é sempre polémico, um balanço anual que pretende totalizar um tão vasto campo de saberes é, inevitavelmente, um campo de batalha.

Este exercício tem pelo menos um aspecto positivo: informa-nos sobre o estado do “mercado das ideias” (para usar uma designação de Ronald Coase, economista inglês premiado com o Nobel, que deu origem a uma grande polémica, nos anos 80 do século passado), sobre a circulação do saber organizado em disciplinas, tal como a universidade moderna as configurou.

Encontramos nesta lista alguns livros que fazem parte de uma forte corrente actual, que enche as livrarias dos países de grande produção editorial: trata-se dos livros de teoria especulativa (de cariz ensaístico ou inscrevendo-se numa disciplina específica) que pretendem pensar criticamente o presente, descrever as grandes transformações contemporâneas e fazer diagnósticos da época. É o caso do livro de Thomas Piketty, O Capital no Século XXI.

Nesta tendência, podemos também incluir um livro vindo de um grupo que faz a ponte entre a investigação universitária e o mundo mais “profano” dos debates intelectuais e políticos: o grupo Unipop, que organizou um volume sobre Pensamento Crítico Contemporâneo (que foi, aliás, objecto de uma crítica séria e estimulante, que se prolongou num interessante debate, iniciado por uma das pessoas que participa neste balanço, Diogo Ramada Curto).

Por muitas e legítimas dúvidas e reticências que a designação “pensamento crítico” suscite, o que é um facto é que há hoje uma fecunda produção teórica (muito especialmente, no campo da teoria política) que é integrada nesta etiqueta.

Evidentemente, os pais fundadores desse tal “pensamento crítico” são alguns “clássicos” do século XX, que estão para além dessas etiquetas e têm vida própria fora dela. Devemos no entanto registar que esta tendência bem visível no “mercado das ideias” internacional (sintoma de épocas de crise e de transformação das suas estruturas e superestruturas) tem, entre nós, uma presença muito ténue, embora suficientemente visível para aflorar na lista.

Mas não é esse o único domínio com fraca representação em termos editoriais. O ensaísmo e as ciências humanas e sociais têm sofrido uma fortíssima retracção no panorama editorial completamente orientado para livros de circulação muito efémera e rápida, ao ponto de algumas espécies quase terem desaparecido (por exemplo, escandalosamente escassos são os ensaios literários e a filosofia).

Muitas das colecções de referência desapareceram e o que há são títulos e autores pontuais e avulsos. Daí que esta lista não pudesse deixar de ser marcada pela dispersão e pelo eclectismo. No meio deste panorama um pouco desolador, saliente-se o trabalho das Edições 70 (onde surgiu, por exemplo, um dos livros desta lista: Sobre o Estado, um curso de Pierre Bourdieu no Collège de France) e da Relógio D’Água.

Que o livro que surge em primeiro lugar na lista, Massa e Poder, de Elias Canetti, seja um livro publicado em 1960, que traz já consigo uma longa história de recepção e consagração, só agora tenha sido traduzido em Portugal e por uma pequena editora (Cavalo de Ferro), deve dar que pensar. Sublinhe-se, aliás, que este monumental ensaio sócio-antropológico é bem a expressão de uma atitude ensaística que tem a ver com o que Foucault chamou uma “ontologia crítica do presente”.

Canetti surge aqui claramente como um gigante do século XX que, como alguns dos seus pares, só no nosso tempo chegou ao momento da sua legibilidade. Por último, refira-se outro aspecto de que esta lista é sintoma: não havendo em Portugal uma forte rede de editoras universitárias, e dado que o mercado editorial quase não contempla hoje áreas muito especializadas do saber, cada vez mais a investigação na área das ciências humanas e sociais tem uma limitadíssima irradiação pública. O “mercado das ideias” vê-se assim bloqueado. E todo o balanço anual mostra essa evidência.

Sugerir correcção
Ler 1 comentários