A vanguarda de ontem e a telenovela de hoje

No Curtas Vila do Conde, a música tensa dos peixe:avião devolveu o dramalhão mudo Ménilmontant ao seu experimentalismo de origem

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"Ménilmontant", revelado sábado em Vila do Conde com música ao vivo dos peixe:avião DR

Enquanto a Holanda e a Costa Rica se digladiavam para ver quem passava aos quartos de final do Mundial, o Curtas Vila de Conde recebia uma das suas maiores enchentes de sempre em noite de abertura com a ante-estreia de Night Moves de Kelly Reichardt, apresentado pela própria realizadora.

Quem ficou para a primeira das sessões “fora de horas” do festival, contudo (e foram suficientes para uma boa plateia do Teatro Municipal), terá apanhado uma daquelas boas surpresas em que o Curtas pode ser fértil, no primeiro dos quatro filmes-concerto Stereo que pontuam a edição 2014. Neste caso, com a revelação de um peculiar mudo francês dos anos 1920 sonorizado ao vivo pelos bracarenses peixe:avião, Ménilmontant, que a lendária crítica americana Pauline Kael dizia ser o seu filme preferido.

História de duas irmãs órfãs na Paris do início do século a quem o destino prega a cruel partida de serem seduzidas e abandonadas pelo mesmo homem e acabarem na rua (embora de maneiras diferentes), Ménilmontant é um daqueles dramalhões de faca e alguidar como já não se usa. Mas, nos idos de 1926, o que o russo radicado em França Dimitri Kirsanoff fez dele colocou-o à frente das vanguardas impressionistas da época. E percebe-se porquê: para além de se ver por aqui um dos primeiros “planos Dardenne” da história do cinema, o modo como Kirsanoff filma Paris é de uma invulgar modernidade, algures entre a teatralidade de Griffith e a geometria de Eisenstein. Anterior em pouco à Sinfonia de uma Capital de Ruttmann, o filme tem, coisa pouco normal para a época, uma narrativa puramente visual, sem intertítulos.

Para a sua banda-sonora non-stop, os peixe:avião escolheram sublinhar a modernidade estilística de Kirsanoff com uma partitura de uma notável tensão urbana, ora sonhadora ora pulsante, trazendo ao de cima a dimensão circular do filme. Que começa e acaba com um acto de violência - como se a tragédia com que tudo começa, deixando as duas irmãs órfãs, tivesse uma resposta final que as liberta – mas que fervilha com a poesia das possibilidades de um período em que tudo estava ainda por fazer na sétima arte.

É verdade, sim: a vanguarda de ontem é a telenovela de hoje (Ménilmontant quase pede uma sátira almodovariana), mas o que se viu em Vila do Conde ao fim da noite de sábado mostrou que até as telenovelas de hoje podem ser salvas se se souber olhar para elas de outro modo. 

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