Mehran Tamadon: "Filmo o inimigo, porque o que me interessa é dialogar com ele"

Entrevista com o cineasta iraniano Mehran Tamadon, que procurou o diálogo com os mullahs da República Islâmica. Daí resultou um filme, Iranien, estreado na Berlinale.

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"Iranien" é o resultado de dois dias de coabitação entre Tamadon e quatro mullahs islâmicos

Ao longo de três anos, o cineasta e arquitecto iraniano exilado Mehran Tamadon procurou convencer compatriotas seus, defensores do regime da República Islâmica instaurada no Irão em 1979, a partilhar casa durante alguns dias com um iraniano ateu e laico – ele próprio. Uma ideia que surgiu da sua tentativa de compreender a mente das milícias revolucionárias no seu anterior documentário, Bassidji, exibido em 2009 no DocLisboa.

Quase quatro anos depois, o resultado dessa tentativa de vida em conjunto foi estreado no Festival de Berlim. Iranien é o compacto, em pouco mais de hora e meia, de dois dias de coabitação entre Tamadon e quatro mullahs islâmicos – da tentativa de provar que não há dois Irãos diferentes, mas apenas um.

Entre a rodagem, em Outubro de 2012, e a estreia em Berlim, em Fevereiro de 2014, muito aconteceu – mas Iranien continua a ser um objecto “à parte”, vital para a compreensão do Irão. Pelo Ocidente mas também pelos próprios iranianos, como Tamadon explicou em entrevista ao PÚBLICO em Berlim.

Para si, qual é o verdadeiro Irão? Os dois dias de coabitação em conjunto, ou o regime islâmico?

Penso que no verdadeiro Irão existe este viver em conjunto, só que não é filmado. Em todas as famílias iranianas há quem pense como eu e quem pense como eles, e a dada altura vão ter de comer juntos. Mas isso nunca é filmado. Ao filmá-lo, saímos da esfera privada, passamos ao domínio público e é aí que está verdadeiramente a diferença.

O que tento fazer com este filme é transformar a realidade. Trabalhei três anos para tentar dar início a algo que só poderá dar frutos no futuro. Será talvez uma utopia no sentido estrito do termo - uma sociedade inexistente - mas em qualquer caso é possível vivermos todos juntos. Mas eles não se colocam no mesmo registo que eu. Durante todo o filme, avançamos em paralelo; eu procuro viver em conjunto e eles tentam demonstrar que sou intolerante. É isso que eles querem, e acabam por conseguir mostrar que tenho os meus limites...

Crê que a eleição de Rouhani vai mudar algo?

Estas coisas fazem sempre avançar algumas coisas ao nível da sociedade civil - mas estas pessoas não vão mudar, e o modo como pensam não vai mudar. A questão é que eles não têm a mesma relação com o tempo que os ocidentais têm. Nós somos mais apressados do que eles. A partir do momento em que existe um além, o tempo deixa de ter a mesma importância... Há uma frase muito conhecida de Khomeini que data de 16 ou 17 anos antes da revolução, em que ele diz ao Xá que o vai correr do país. O Xá pergunta-lhe "com que exército, sr. Khomeini?". E Khomeini disse "Com um exército que hoje ainda está no berço." E 17 anos depois teve lugar a revolução. Eles sabem ter paciência e nós, os iranianos ocidentalizados e leigos, não. Há um movimento revolucionário verde? Dizemos que daqui a três semanas tudo estará acabado e a República Islâmica vai desmoronar-se. Não pensamos em função do longo prazo, apenas do curto prazo.

O seu cinema não é exibido no Irão...

Durante muito tempo e até há alguns meses dizia que fazia filmes para os iranianos, mas como os meus filmes são muito mal recebidos pelos iranianos já não o digo... Muitos iranianos intelectuais não suportam a minha abordagem. Conheço uns quantos que me diziam para eu não fazer os meus filmes e o que é bizarro é que não é verdadeiramente aos iranianos que os meus filmes interessam...
Na vida real, a democracia é sempre o compromisso e é isso que torna possível o diálogo. E é frustrante porque há vontade de nunca ceder, mas isso nunca é possível, a democracia é ela própria frustrante. E desde que faço filmes que me sinto frustrado, que aprendo a suportar a frustração e que procuro não desabafar. É isso que muitos iranianos querem, querem desabafar e não o podem fazer com os meus filmes.

Sente-se parte de uma genealogia de cineastas iranianos?

Diria que não. Não filmo as vítimas, filmo aqueles que têm o poder - filmo o inimigo e o que me interessa é dialogar com o inimigo, coisa que não interessa minimamente aos iranianos, que não querem compreender o outro. Não sou passivo nem sofro em silêncio, não me sinto vítima. Alguém como Jafar Panahi filma-se sempre como vítima. Claro que estamos de acordo com ele, sim, é duro, é difícil, mas ao sair dos filmes do Panahi, o que é que fazemos, desatamos a chorar? Como tenho formação de arquitecto vejo as coisas em termos de projecto: para que é que isto serve? Projecto para o futuro. Quando se faz um filme sobre vítimas, quando acabou, acabou.

Mas de algum modo você também se filma em vítima: no fim do filme, explica que lhe confiscaram o passaporte e o proibiram de regressar ao Irão.

Mesmo assim existe uma diferença: em Iranien, temos vontade de falar com estas pessoas, cria-se qualquer coisa para o futuro, enquanto um filme de Panahi se fecha sobre si próprio. Nesse sentido, existe um projecto. Talvez um dia venha a arrepender-me deste final... [risos].

Mas não podia terminar o filme de outra forma. A verdadeira resposta do sistema à minha proposta de viver em conjunto foi expulsar-me. E tinha vontade de terminar esta tentativa de diálogo entre indivíduos com a presença de um sistema que impede o diálogo.

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