O inverno de Moz

A tour de Morrissey pelos EUA acaba quando o Inverno terminar numa altura em que, mais uma vez, se especula sobre se será esta última digressão do compositor de 53 anos. Acreditará ele, como na canção que canta, que só os novos são amados? Veremos se é verdade ou ironia.

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Em Paredes de Coura 2006 Paulo Pimenta

Como quem não acaba de entrar num palco, como quem nunca de lá saiu, o homem por quem esperam calmamente mais de duas mil pessoas vai dizendo, microfone na mão: no meu quarto, tenho um banco de piano, uma guitarra... Claro, os aplausos renovam-se. “I feel… a song… in my heart”, completa, acto coordenado, todos os instrumentos arrancam com as primeiras notas de Shoplifters of the world unite (música dos Smiths). Morrissey e os seus músicos entraram como um disparo no Tilles Center for the Performing Arts, Greenvale, o local escolhido para o arranque da Morrissey Winter Tour 2013 pelos Estados Unidos que termina a 8 de Março em Portland, Oregon.

O descaso do músico em palco é apenas aparente. O ar aborrecido, a despachar, como quem diz que não sabe bem se gosta muito de estar ali mas é ali que está, faz parte da persona que há muito criou, desde o início dos anos 80, ainda com os Smiths. É um descaso ensaiado. A actualidade está lá; a posição, irónica ou cínica ou militante perante algumas questões. Mas quando ele quer, com uma agenda própria. Logo ali, à primeira música, numa alteração pontual da letra, já a canção vai longe: "but last night a plan of a future war / was all I saw in Siria", em vez do original …on Chanal 4”. Alguns terão notado numa sala que encheu mas nunca se abandonou a ele, nunca o acompanhou, nunca se esqueceu que estava ali, nunca as suas vozes se sobrepuseram à dele, nem quando cantou, já a terminar, “I am the son/ and the heir/ Of a shyness that is criminaly vulgar”.

Estamos a uma hora de Manhattan de carro, a cerca de duas no percurso alternativo, um combinado entre comboio, autocarro e uma espera que não tem que ver com o ritmo da cidade. Sabe-se que o autocarro há-de vir e ir até ao campus da universidade de Long Island, em Greenvale, uma população que ultrapassa em pouco os mil habitantes e vive, precisamente, em função da universidade. Brookville é o centro urbano mais próximo. Passa em pouco as três mil pessoas, quase tantas pessoas como a capacidade do auditório onde vai actuar e é considerada – signifique o que significar -- uma das vilas mais saudáveis da América para viver. Qual a razão para a escolha de Morrissey arrancar, ali, uma tour pela América? Especula-se. Teste intimista? O estado é o de Nova Iorque. Dois dias depois estará no BAM, em Brooklyn, uma das salas actualmente mais cotadas da cidade de Nova Iorque, diante de um público urbano e num dos grandes testes desta tour que parece, assim, começar baixinho, em Greenvale.

Tudo leva a pensar isso. O facto é que estamos a lidar com Morrissey, no universo dele, ditado pela sua cabeça que permanece um mistério construído à custa de muita ironia e boa gestão do privado. Greenvale é, pois, o sítio. O ambiente antes do espectáculo poderia anteceder um ballet ou concerto de música clássica, não fossem uns “excêntricos” penteados com um estilo que tem o nome do cantor, uma ou outra tatuagem, a maquilhagem mais carregada em meia dúzia de raparigas, uma banca a vender T-shirts com frases de ordem com patente Morrissey registada, For those I love I Will Sacrifice ou England is mine anti t owes me a living. Trinta dólares a peça.

Sim, podia ser um espectáculo para convidados, um novo teste à América que aí vem, nestes dois meses que se seguem a este 9 de Janeiro, quase sempre em salas que não ultrapassam os 2500, 2700 lugares. Pode ser por isso tudo. Pela intimidade que se procura como quem procura uma razão. Aquele não é um sítio óbvio. Mas se Morrissey foge desse previsível, acaba, no entanto, por tantas vezes se refugiar na segurança do que se repete. Basta que nesse princípio, na génese, tenha estado o êxito. Por isso em Greenvale, por menos óbvio, Morrissey também seguiu receitas certeiras.

Do improvável
Por enquanto, o sotaque que mais se ouve é o inglês. Bebem-se as primeiras Brooklyn lagers, conversa-se baixinho; um rapaz magro com o penteado típico dos fãs de Morrissey e uma fotografia dos Smiths estampada nas costas do blusão de ganga pergunta a outro rapaz em que comboio veio. “De carro”, ouviu. Como de carro foram a maior parte dos pais e filhos, famílias inteiras, adultos na casa dos trinta, quarenta, cinquenta, uns poucos pré-teenagers e uma muito ténue amostra da população universitária que se poderia esperar, estando o concerto agendado para um campus universitário. É como que Morrissey a tocar em casa, que é como quem diz, entre quem, como ele, já prefere o lugar sentado de um concert hall, um copo de vinho ou cerveja a preços que um estudante não pode pagar, num lugar que, pelas suas características geográficas, é selectivo q.b. Só ali vai quem pode ou quem gosta mesmo de Morrissey.

Mas caem logo clichés ou preconceitos. Morrissey não quis tocar baixinho e isso percebeu-se no arranque. Melhor. Antes do arranque, quando escolheu Kristeen Young, a songwriter e teclista do Missouri, com as suas melodias dissonantes para fazer a primeira parte de alguns dos seus concertos neste périplo americano. Numa entrevista ao Ípsilon em Julho de 2012, pouco antes de cancelar o espectáculo agendado para Cascais, Morrissey referia-se a Kristeen Young como a única cantora capaz de reter a tua atenção num momento em que deixara, garantia ele, de gostar da música que se faz. Morrissey, o provocador que nunca despe a capa de tímido, gosta destas tiradas. Kristeen tocou no Tilles Centre, mas o público estava distraído dela e o maior e mais espontâneo aplauso da noite, para quem não pediu qualquer aplauso, foi inteirinho para um muito jovem David Bowie que apareceu na grande tela a cobrir o palco, vídeo Jean Genie, uma música de 1972, que Morrissey escolheu para estar, como Nico que, juntamente com Lou Reed, definiu os Velvet Underground, ou Françoise Hardy, entre as suas inspirações de adolescente e com elas inspirar a plateia. Foi antes dos holofotes brancos varrerem a sala cheia, numa coreografia para a voz de Robin Guthrie, dos Cocteau Twints. Uma espécie de lista/poema, cantado; gravação com que Morrissey (Moz, para os fans) tem aberto alguns dos seus concertos desde 2004. É fácil recorrer a The Imperfect List neste momento do mundo, fazer repeat, e ter o sucesso garantido para a entrada que se aguarda. Eficácia testada. São 64 “coisas” menos boas, visão abrangente, que vão do Apartheid a Adolf Hitler, “the facking bastard Thatcher”, ao dentista, a Praça de Tiananmen, como às consequências de esquecer as chaves de casa. O compositor e guitarrista inglês Peter Wylie leu esta lista à namorada da época, fez dela um poema, e Morrissey um momento quase de ópera com a ajuda de Guthrie. Bravo!

On repeat
Sim, ele repete. A indumentária, os gestos, a pose, as entradas em palco, o momento em que muda de camisa ou a despe ou a atira aos braços que se levantam no ar, os abraços permitidos, o contacto com o público. Em Greenvale, Morrissey apareceu de camisa e calças azuis escuras, o penteado de sempre, os cinco músicos que o acompanham vestidos de igual. Ou quase. Morrissey está ali para destoar e só ele tem a camisa aberta, a revelar o peito, como de costume, e como quase sempre a passar a mão pelas mãos dos que não se quiseram sentar e se colaram ao palco. Gesto quase blasé, o dele, de quem quer é passa à música, mas sabe que aquela é uma das etapas. E passa rápido pelas quatro primeiras. Shoplifters of the World Unite, Irish Blood, English Heart, Alma Matters e Still Ill…  peças de um alinhamento que nunca deixa de ir aos Smiths e percorre trinta anos de carreira a solo de um dos mais consistentes e permanentes músicos britânicos no top 10 do seu país . Consistência talvez seja mesmo a melhor palavra para definir o músico em cena. Não se esperem grandes improvisos, mas a eficácia é à prova dos mais picuinhas. A sala está tão contida quanto ele, nunca se entregam um ao outro totalmente. Mas ele traz arranjos novos, dá largas à guitarra, à bateria, velhas cantigas parecem irreconhecíveis e a voz menos melosa, mais próxima da sujidade do rock. You’re the one for me, Fatty e as luzes apontadas à plateia, “strobe”, alucinação impiedosa que impede olhar o palco, e logo toda a alma em You have killed me, luzes para ele, num palco limpo. Só os músicos e três círculos de luz na bateria. Talvez um dos momentos mais altos do concerto que teve outro momento irrepetível, umas canções à frente, depois de I’m throwing my arms around Paris e de Speedway (uma das músicas que tirou mais aplausos da audiência, com Morrissey a ensaiar uma interpretação à medida daquela noite, ora toadas melancólicas, ora a vincar o ar de rock de todo o concerto). Há finalmente quem dance, quem invada o palco, sem sustos para os seguranças. E a frase “I can’t waist time anymore” a ganhar um simbolismo que Morrissey quer vincar  em Action is my Midlle Name. E uma interpretação de olhos molhados em I Know it’s over

Olá e adeus
Pausa precisa-se. Há nós em algumas gargantas e Morrissey está treinado para saber de si e de quem o ouve. E diz olá, tempo de dizer olá a um velho amigo, Ouija Board, Ouija Board … até ao apocalíptico Maladjusted. E como é que a sala não salta nem abana com esta versão de One Day Goodbye will be Fairwell? É ver Morrissey consigo mesmo. Se pudéssemos classificar esta relação ente o artista e quem o vê, seria um shy to shy. Diz-me quem é o mais tímido e logo te direi quem está a viver mais este momento. Ele parece imerso nele quando agarra no microfone e, no fim da música, o estende ao público. Alguém pergunta quem é o rosto que se repete nos dois bumbos da bateria? Ele não ignora, mas passa a outra pessoa e a outra e ninguém sabe a resposta e ele não responde, que não sabe, não pode, que tem estado demasiado ocupado… a sofrer. E já virou as costas para todos, The youngest is the most loved.

Tudo antes que grandes letras manchem de vermelho o pano branco no topo do palco, Meet your meat, um statemant do vegetariano Morrissey que já vinha dos Smiths, Meat is Murder, com imagens servidas para chocar, animais criados para abater e ser bife no prato de cada um de nós. É a primeira vez que Morrissey sai do palco para deixar espaço à banda, adensar o drama na tela. E o microfone a apanhar outra vez alguém desprevenido. “Comentários?” O mais inteligente que se ouviu foi a pergunta “é mesmo verdade que não come ovos?” Claro que não come ovos. “O que é que isso lhe interessa?”, responde, já sem olhar a interlocutora. E ainda não tinha acontecido um cover. To Give para quebrar a tensão, música de outro, Frankie Valli, balada para quem se quer ver e ser visto como um crono para aclamar o que saiu dele. Entra a biográfica November spawned a monster e, outra vez Smiths, Sweet & Tender Hooligans. É tempo de limpar o suor e voltar de camisa lavada para Let Me Kiss You. Quem o conhece sabe o que se segue. A camisa sai, claro. Falta saber em que verso: “But then you open your eyes, and you see someone, that you physically despise”. É Morrissey nu, aos 55 anos. Auto-depreciação? “But my heart is open/ my heart is open to you”, as palavras finais são ditas a nu, camisa baixa antes de a atirar ao público e a saída uma hora e um quarto depois de entrar.

Não se ouviu Suedehead, não se ouviram outros clássicos. Uma passagem pelos concertos mais recentes e percebe-se que há uma gestão da dose de mega-hits. O humor, o sítio ditam um alinhamento que aqui poderia ter tido muitos encores, mas teve o que melhor lhe serviu. How soon is now? Smiths a abrir e fechar o primeiro concerto da tour de 2013 de Morrissey pelos EUA e o palco é tomado de assalto. Uma criança entrega-lhe um envelope, uma rapariga abraça-o. Atenções distraídas para alguém que já o agarra pelos ombros. Segundos até ser posto fora, os mesmos que demorou o rapaz que viera de comboio com o blusão estampado com os Smiths a chegar até Morrissey e a forçar um cumprimento que foi um pouco mais do que isso. No fundo do palco, longe das luzes, Morrissey recompunha-se, recuperava a voz, saltou três versos. Visivelmente chateado virou as costas ao público, especula-se se será motivo para cancelar o próximo espectáculo. Nunca se sabe, conhecem-se-lhe as birras. Mas a voz regressa. Ele canta. “I am Human and I need to be loved/ Just like everybody else does…” 

O pano caiu, as luzes acendem-se e a sala fica vazia ao som de Klaus Nomi com Death, o lamento de Dido, de Purcell. Como num requiem. Fim do primeiro concerto.

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