Vila do Conde ou a cidade dos fantasmas

Nos primeiros dias do Curtas 2014, uma quantidade surpreendente de filmes a concurso literalmente assombrados

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visita de Patti Smith ao túmulo marroquino de Jean Genet filmada pelo documentarista e artista visual alemão Frieder Schlaich (Three Stones for Jean Genet) dr
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The Claustrum sobre casos psicossomáticos de mulheres prisioneiras dos universos que elas próprias construiram dr
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It Can Pass Through the Wall , do romeno Radu Jude dr

Um dos mais peculiares fios condutores do concurso 2014 de Vila do Conde – tanto internacional como nacional – é a quantidade de fantasmas que assombram os filmes seleccionados. Alguns estão literalmente presentes, outros são simples metáforas – mas a sensação de um festival “assombrado”, essa já ninguém nos tira.

Esses fantasmas exprimem-se visivelmente num dos melhores títulos no concurso internacional, It Can Pass Through the Wall, do romeno Radu Jude: uma adaptação livre de Tchekhov onde uma menina não consegue dormir, assustada pela presença no apartamento ao lado do cadáver do vizinho que se suicidou. É mais um exemplo do “estilo romeno” no seu melhor (é um plano único de 15 minutos com quatro actores), confirmando Jude (cujas duas excelentes longas foram vistas no IndieLisboa mas nunca chegaram às nossas salas) como um dos mais interessantes cineastas desta nova geração.

Há fantasmas (mas também celebração) na visita de Patti Smith ao túmulo marroquino de Jean Genet filmada pelo documentarista e artista visual alemão Frieder Schlaich (Three Stones for Jean Genet). E há fantasmas de sonhos e desejos no olhar que o veterano experimentalista Jay Rosenblatt lança em The Claustrum sobre casos psicossomáticos de mulheres prisioneiras dos universos que elas próprias construiram. Na sua conjunção de texto analítico e found footage dos “anos de ouro” do sonho americano, The Claustrum desenha universos fechados sobre si mesmos mas duplamente assombrados - pela família que levou estas mulheres a buscar uma fuga, pela ilusão de uma vida normal alimentada pelas imagens e pela cultura em que vivem.

Também o concurso nacional está assombrado. Já abordámos de passagem Hospedaria de Pedro Neves, a esse nível talvez o mais evocativo dos filmes já mostrados, que sobrepõe com inteligência ao registo documental dos pertences abandonados num albergue portuense os fantasmas das histórias que ali se viveram. Fale-se agora do lamentável Zeroville de Sérgio Ribeiro, de tal modo assombrado por mestre Godard que confunde ingenuamente homenagem e inspiração com apropriação, limitando-se a fazer um pobríssimo “corte e costura” de citações e excertos de Alfaville.

E fale-se também dos Sonâmbulos de Patrick Mendes, um dos poucos cineastas portugueses a trabalhar regularmente no filme de género. Quase experimental na sua ausência de diálogo ou narração, Os Sonâmbulos é um opressivo trabalho de ambientação no-budget industrial-distópica cujas personagens são, literalmente, fantasmas à espera de morrer. Falta-lhe, contudo, uma narrativa que mantenha o interesse e a invenção ao longo de uma duração excessiva. (A duração é, para já, a grande pecha da edição 2014, responsável por impedir que o sedutor e misterioso travelogue de Miguel Clara Vasconcelos Triângulo Dourado atinja por inteiro a poesia que procura e a espaços encontra.)

Uma palavra, finalmente, para Le Boudin, objecto austero que a realizadora Salomé Lamas define como uma “maqueta” nascida do processo de pesquisa para a sua longa Terra de Ninguém (nesse sentido, tem qualquer coisa de “complemento” ou “extra” daquele). Com o distanciamento e a curiosidade que lhe conhecemos, Lamas cruza o testemunho áudio de Nuno Fialho, “voluntário à força” para a Legião Estrangeira Francesa, com a sua leitura por um adolescente alemão, criando um estranho mas perturbante “diálogo de surdos” ecoando outros tempos – que, na prática, não estão tão distantes como isso, e continuam sempre presente à nossa volta. Como fantasmas.

Crítico de cinema

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