Um teatro de choque

Quase 30 anos depois de estreada, a peça El Público, de Federico García Lorca, foi transformada em ópera pelo compositor Mauricio Sotelo, a pedido do Teatro Real

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Isabella Gaudí, Julieta, rodeada pelos cavalos brancos e seus duplos Teatro Real /Javier del Real
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No início da década de 1930, Federico García Lorca esboçou uma peça "para ser assobiada", El Público. Considerada irrepresentável pelo próprio autor, tendo em conta as expectativas teatrais do tempo, ficou inacabada e subiu aos palcos europeus (incluindo Lisboa) só na segunda metade dos anos oitenta; provocou então escândalo em Londres.

Nesta peça, numa linguagem influenciada pelo surrealismo, tão poética quão desbragada, aborda-se a verdade do amor, o papel das máscaras, a relação entre vida e arte e a possibilidade de um teatro novo; a pulsão erótica surge no seu espectro mais largo, da languidez mais táctil à violência mais gratuita, tendo no seu centro o desejo homossexual. Através da relação entre o Director e Gonzalo, seu antigo amante, imagina-se um teatro subterrâneo feito de verdades sepultadas, como a de Julieta, que brevemente ressuscita, aspirando a um amor proibido, que não o de Romeu; mas o público, dividido, afasta-se ou revolta-se, crucificando também esse amor, ou esse espectáculo.

Foi esta peça que o anterior director artístico do Teatro Real, Gérard Mortier (1943-2014), quis ver transformada em ópera pelo compositor espanhol Mauricio Sotelo (n. 1961), que para tal se apoiou no seu amigo escritor, também músico, Andrés Ibañez, a quem confiou o libreto. Ideada e composta entre 2010 e 2014 (com a escrita concentrada em 2011/2012), foi estreada em Madrid na passada terça-feira, já depois da morte de Mortier, a quem é dedicada. Manter-se-á em palco até dia 13 de Março; a récita de dia 6 será transmitida em directo no canal de televisão Arte.



Para Andrés Ibañez, El Público "representa o lado mais negro de Lorca, a sua busca de um teatro impossível". O libreto conserva o texto original, que foi contudo comprimido através de cortes cirúrgicos, procurando-se "conservar o absurdo e o obsceno, e tudo aquilo que para Lorca era de mais pessoal (o amor homossexual, a reflexão sobre as máscaras)". Algumas mudanças procuraram corresponder a sugestões do compositor, Mauricio Sotelo, cuja preocupação primeira foi "ser fiel à visão que Mortier tinha de uma ópera espanhola dentro da tradição europeia, o que implicava reter a sua inteligibilidade."

De resto, "todo o elemento musical é baseado em dicas textuais, incluindo cores tímbricas, notas derivadas de simbolismos numéricos, os acordes espectrais usados como filtro; por exemplo os cavalos com as suas trompetas sugeriu-me o início trompeteado da seguidilla, que é depois transformado num trompetear orquestral; e o assassínio da criança motiva o único grande cluster da obra." Esta inspiração lorquiana aplica-se em geral a uma das características mais marcantes desta partitura, a presença do flamenco andaluz.

Na verdade, em palco e no fosso orquestral não vemos apenas o habitual grupo de solistas, um coro de cinquenta pessoas e uma orquestra de câmara (Klangforum Wien), a que se soma, de forma mais invisível, música electrónica e um sistema de amplificação/transformação que realça e unifica o resultado sonoro. Temos também um percussionista (Agustín Diassera), um famoso guitarrista de flamenco (Juan Manuel Cañizares), dois conhecidíssimos cantaores (Arcángel e Jesús Méndez) e, como bailarino, o director e coreógrafo do Ballet Flamenco de Andalucía (Rubén Olmo). A integração na ópera desta fina-flor do flamenco andaluz contemporâneo constituiu um desafio tanto para compositor como para os intérpretes.

O flamenco tem sido atentamente escutado por Maurico Sotelo, que desde há largos anos procura maneiras de o integrar na própria criação, evitando tratá-lo como exotismo desgarrado, ou tique nacionalista; no caso vertente, isso passou por enviar aos cantores ficheiros áudio com um esboço sobre o qual, durante três dias, eles gravaram a letra de acordo com o seu estilo; fase de que resultou novo ficheiro já com os ritmos e notas ajustados, "repintados com a sua voz", para eles aprenderem e memorizarem de ouvido.

Segundo Francisco Arcángel, "o Mauricio marca a entrada, as notas, as saídas, mas dá-nos liberdade suficiente de fazer a música à nossa maneira; ele sabe que as notas-base (que definem os diferentes estilos) estão lá, mas o que está no meio (os contornos da melodia e o tempo que dura) depende do teu domínio do material e da tua decisão pessoal, consoante o dia em que estás e como o sentes; há uma improvisação ordenada, não seríamos capazes de reproduzir em todos os pormenores, em todas as actuações, uma só maneira de fazer. Já actuei em obras dele com quarteto e com orquestra, mas esta ópera foi mais difícil, custou-nos as férias; pela extensão, mas sobretudo pela componente cénica, e aprender a actuar em turma. No princípio era tudo novo, movimentos, figurinos, vestimo-nos de uma forma muito estranha; mas também a dinâmica de um grupo. Muitas vezes não se tem a referência do maestro, temos que ter os cinco sentidos alerta; costumo cantar em palco, mas fazê-lo por um minuto, e ter de estar calado três minutos antes de intervir de novo — nesse tempo, que parece longuíssimo, tens que te mover de certa maneira, tens que ouvir os outros solistas, a orquestra, estar super-concentrado para não perder a nova entrada — isso foi o maior desafio."

Para quem segue uma partitura, a espera não é tão dramática, porque há um hábito de contagem de tempos; no entanto estes hábitos não são os mesmos das sequências rítmicas do flamenco: "no ritmo, porque nos é intrínseco, somos bastante exactos", acrescenta Arcángel; "não é que os outros não sejam, mas à sua maneira; mas apesar disso conseguimos ajustar-nos", muito graças à escrita rigorosa de Sotelo e ao maestro Pablo Heras-Casado, que tendo vivido toda a juventude em Granada, tem familiaridade com o flamenco e consegue compatibilizá-lo com a linguagem clássica.

Para os cantores educados em conservatórios, a presença dos cantaores causou alguma perplexidade, e não só por não se apoiarem na partitura: "eles rasgam mais a voz", diz-nos a soprano Isabella Gaudí, "não sei como o fazem, a partir das entranhas, é perigoso, podem romper a voz; enquanto nós a cobrimos procurando as ressonâncias; mas na minha linha de canto vislumbro algo de flamenco, de modo que a fusão acaba por funcionar".

O seu próprio papel, de Julieta, pôs-lhe problemas: "na ária un mar de tierra blanca, estou a cantar a solo, sem acompanhamento, imenso tempo, e acabo muito agudo e pianíssimo, o que é tecnicamente difícil de conseguir. Do ponto de vista interpretativo, há uma mudança brusca, quase imperceptível, entre duas Julietas; a primeira, arrancada a Shakespeare, submissa a um fado, atraída pelo carnal; a segunda já crê no amor verdadeiro, em que a mulher tem voz e voto, e domina o seu destino. De alguma forma, em Lorca surge um canto feminista... como, e porque é que se opera a mudança? Tenho que saber quem é a Julieta, torná-la real".

Durante a ópera, Julieta é acossada pelas pulsões irracionais da natureza, simbolizadas por três cavalos brancos (dois cantaores e um bailaor), duplicados por bailarinos; mas acaba por escolher cavalgá-las, à sua maneira, mesmo urinada pelos animais. No último quadro, Julieta é denunciada pelos seus pés de homem; seria ela um rapaz de quinze anos? Um estudante responde que podendo amar, não interessa. Atravessado por enigmas e aparentes incongruências, o texto de Lorca desafia o público: "a obra é muito densa, e para além de versar temas complexos e abstractos, é composta por cenas que transmitem muitas sensações e sentimentos, é um espelho para o espectador se olhar a si mesmo, para retirar dele a sua própria leitura", acrescenta Isabella Gaudí. Arcángel concorda: ele espera "que as pessoas venham com o coração aberto e a mente aberta, perante uma obra que não é fácil e na qual trabalhámos no duro. Acho que foi um acerto abordar uma obra surrealista através da música contemporânea, que capta a estranheza, o múltiplo. As opiniões hão-de diferir, mas gostava que no fim do espectáculo, ninguém lhe ficasse indiferente."

 
O crítico esteve em Madrid a convite do Teatro Real
  

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