Um portento musical chamado Selma

A moçambicana Selma Uamusse transformou o pequeno auditório do CCB, na noite de 2 de Novembro, num lugar de festa e celebração inesquecíveis.

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Selma Uamusse é uma excelente cantora e uma espantosa performer GONÇALO F. SANTOS

Andam sempre a pedir-lhe um disco, o tal disco, o sempre adiado disco, mas a verdade é que esse pedido encobre uma injustiça: a energia, o fulgor, a arte pura de Selma Uamusse não cabe num disco, transcende esse pequeno espaço, é uma arte para viver em palco, em comunhão com o público, e foi isso mesmo que ela mostrou de forma assombrosa no CCB.

Com a sala do pequeno auditório praticamente cheia, Selma cantou (encantando), suou, pulou, vibrou e fez vibrar, foi ela mesma e um povo que lhe corre nas veias e que, reflectido nela, é de uma imensa e nobre beleza. Cantando em changana ou em inglês, misturando idiomas como uma escultora de sons, Selma falou em Deus e na natureza, lembrou a parábola do semeador a propósito de Ngono Utana, aliou a voz profunda de ritmos ancestrais a sonoridades novas, a batidas urbanas, num discurso musical electrizante e hipnótico.

“Does Africa know a song of me?”, a pergunta ouvida em Song of Africa, que Susana Travassos compôs para ela a partir do livro África Minha de Karen Blixen, levou-a a andar por entre a plateia, cantando ao ouvido dos espectadores, movendo-se agilmente por cima das cadeiras, o rosto banhado em suor e a voz como uma prece vinda do fundo da alma.

Pôr a assistência a dançar, ou a repetir refrões, ou onomatopeias, foi tarefa fácil para ela. Como se estivesse em casa, na sua casa – e afinal estava, porque da plateia foi tirando amigos como um mágico tira coelhos da cartola, unindo tudo numa onda rítmica e afectiva, com vários amigos e familiares (inesquecível o balanço tão natural, na dança, da sua tia Olga) a subirem ao palco para dar um tom colectivo à festa.

Ouviram-se canções novas (as do tal EP que dará lugar em 2017 a um disco maior, como Mati ou Ngono Utana) e temas que ela já tem cantado noutros palcos, mas em nenhum momento houve algo deslocado ou fora do lugar. “Já recuperaram o fôlego? É que eu às vezes não aguento comigo mesma”, gracejou ela depois de um momento de euforia rítmica. Sim, aguentamos. Aquela voz, aquela forma de cantar, aquela presença portentosa, faz esquecer qualquer cansaço.

Os músicos (Gonçalo Santuns, Augusto Macedo, Nataniel Melo, Iúri Oliveira, Jori Collignon e, como convidado especial, o extraordinário Cheny Wa Gune, do grupo Timbila Muzimba) foram inexcedíveis na construção da “cama” sonora onde Selma pulou até deixar as molas do colchão à beira do colapso.

Das timbila (xilofone moçambicano) ao pequeno talking drum, tudo se concertou para que tivéssemos uma noite magnífica. Que venha o disco, mas por favor não a encarcerem nele. Selma Uamusse, excelente cantora (os seus graves e agudos, na emotiva filigrana do seu canto, são uma dádiva dos deuses), espantosa performer, foi talhada para os palcos e é neles que deve ser vista, ouvida e aplaudida como merece. Qualquer disco, por belo que seja, há-de encerrar apenas uma parte da extraordinária bênção que é a sua arte.

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