Um festival com pessoas no ar e uma dose (boa) de meditação

Houve hipnose com William Basinski, houve explosão de energia e fúria com Converge. E tudo fez sentido. O primeiro dia do Amplifest não desiludiu. E ficou provado, mais uma vez, porque é um festival necessário.

Os Converge são mestres do hardcore de veia experimentalista
Fotogaleria
Os Converge são mestres do hardcore de veia experimentalista Ricardo Castelo/NFactos
Fotogaleria
Altar of Plagues Ricardo Castelo/NFactos
Fotogaleria
Ricardo Castelo/NFactos
Fotogaleria
Ricardo Castelo/NFactos
Fotogaleria
Altar of Plagues Ricardo Castelo/NFactos
Fotogaleria
Converge Ricardo Castelo/NFactos
Fotogaleria
William Basinski, compositor fulcral da música ambiental e experimental deste século, não desiludiu Ricardo Castelo/NFactos
Fotogaleria
Ricardo Castelo/NFactos
Fotogaleria
Ricardo Castelo/NFactos

Público sentado no chão, de olhos fechados, numa espécie de meditação colectiva. É guiado pela música hipnótica e imersiva de William Basinski, um ondular de repetição e sobreposição de sons minimalistas que faz diluir o tempo e pede recolhimento. A paz, a existir, será mais ou menos assim. Vinte minutos depois, há pessoas no ar, uma sala encharcada em suor, um festim de mosh pit, refrães gritados em comunidade e com uma energia primeva (aqui, no meio do caos, também há olhos fechados e mão no peito). Temos os Converge, banda de culto do hardcore. Temos corações ao alto, e uma sessão de pancadaria de impacto físico e emocional.

Foram estes os dois grandes concertos do primeiro dia do Amplifest, sábado, no Hard Club, no Porto. Dois ambientes opostos que ilustram a filosofia deste festival organizado pela promotora Amplificasom: reunir no mesmo espaço música de matrizes estilísticas distintas, apesar de toda ela filtrar as neuroses e o negrume do quotidiano e procurar uma certa forma de catarse. Passar da introspecção ao ruído, passar da música experimental para a música pesada. E assim provocar o público, surpreendê-lo, desconstruir preconceitos, coisa cada vez mais rara em festivais (portugueses mas não só). Não há sobreposição de concertos, precisamente para haver este circuito.

Do black metal para a hipnose

E é curioso ver como o público, de várias nacionalidades (40% dos bilhetes foram vendidos a estrangeiros), se adapta a estes diferentes ambientes. Depois do concerto de Noveller (Sarah Lipstate), que faz justaposições à guitarra de várias texturas, drones e ritmos – em disco consegue criar um mosaico de paisagens cinemáticas interessantes, mas ao vivo perde a fluidez essencial a este tipo de explorações –, os níveis de adrenalina subiram com os Altar of Plagues, banda com despedida anunciada que deu no Hard Club um dos últimos concertos.

Mostraram porque são considerados um dos grandes inovadores do black metal. Há vozes guturais, guitarras a escavar, mas é uma agressividade fora dos cânones rígidos do género, com infusões de pós-rock, aproximações à electrónica, um peso atmosférico e um grande sentido de ritmo, o que faz com que as canções não tenham uma estrutura linear. Goste-se ou não, o Amplifest tem sido uma plataforma importante para cartografar as transformações no black metal a nível musical e ideológico, com bandas que apostam em abordagens mais aventureiras e que contrariam a postura máscula, misógina e homofóbica ligada ao género.

A seguir entrou-se na sessão de meditação guiada por William Basinski, compositor fulcral da música ambiental e experimental deste século, autor da obra-prima The Disintegration Loops, uma elegia ao 11 de Setembro. No Amplifest apresentou o seu último disco, o binómio Cascade/ The Deluge, duas peças construídas à base da repetição e sobreposição de loops de piano e de sons resgatados a velhas fitas analógicas. É música que extrai beleza da decomposição e que abre espaço a uma tranquilidade profunda (ainda que melancólica), tão difícil de alcançar num mundo hiperestimulante como o de hoje.

Houve pessoas que mergulharam neste momento de desaceleração, falando de um certo estado de hipnose – interrompido pelo incomodativo abrir e fechar de portas e por alguém no bar que decidiu ligar a máquina de partir gelo a meio do concerto. Outras, ainda irrequietas do concerto de Altar of Plagues, desistiram.

Furacão Converge

O ruído voltou com os Converge, protagonistas de um concerto que vai ficar na memória do festival. Com um alinhamento em modo best of, a banda americana passou pelos discos principais da sua carreira, do mítico Jane Doe a You Fail Me, de Axe To Fall a All We Love We Leave Behind. Os fãs (e eram muitos, mesmo muitos) tiveram quase tudo o que queriam e deram quase tudo o que tinham.

Num misto de libertação desembestada de energia, fúria e felicidade (sim, é possível andar aos empurrões e às cotoveladas amigáveis com um enorme sorriso na cara), gritaram-se refrães em uníssono, vibrou-se com os riffs à Slayer e com as construções geométricas de Kurt Ballou, guitarrista com uma técnica ímpar, fez-se stage diving e tentou-se abraçar o vocalista, o imparável Jacob Bannon, que passou algumas vezes o microfone ao público para este completar as letras.

Os Converge são mestres do hardcore de veia experimentalista – conseguem orquestrar um caos ordenado, onde cada instrumento tem o seu lugar no meio de uma intensidade arrebatadora –, mas isso não seria o suficiente se não fizessem canções com uma vitalidade e uma vulnerabilidade impressionantes, onde se trituram sentimentos negativos e se partilha a procura pela reconciliação emocional. E, claro, se não conseguissem criar, ao vivo, um forte sentimento de pertença. Drenar impurezas em conjunto é especial e os Converge souberam dar-nos essa oportunidade.

Ao longo do primeiro dia do Amplifest ouviu-se também os guitarristas portugueses Filho da Mãe e Jorge Coelho, e o grindcore entrecortado com noise dos Full of Hell – uma boa surpresa, estes miúdos entre os 18 e os 20 anos que parecem saídos de uma escola secundária americana. O último concerto da noite ficou a cargo de WIFE, projecto com que James Kelly, mentor dos Altar of Plagues, se aventura a solo na electrónica de trilhos pós-dubstep e techno. É interessante ver um vocalista e guitarrista de black metal entrar nos territórios da música de dança e de o fazer com um enorme coração pop, ainda maior ao vivo, mas nota-se a falta de um toque autoral e bastante insipidez.

Além da música, vale a pena referir as Amplitalks, conversas que tiveram lugar no corredor do Hard Club e que contaram com bastante público. Na primeira discutiu-se o jornalismo musical, na segunda reuniu-se um painel com músicos estrangeiros do festival para falarem sobre o seu trabalho. Um tipo de programa que fazia todo o sentido existir em mais festivais, pois permite reflectir sobre a música e as actividades que a suportam, bem como quebrar a barreira entre artistas e público.

A quinta edição do festival continua este domingo com concertos de Atila, Metz, Stephen O’Mally, dos Sunn O))), e Amenra, entre outros. Resumindo, outro Amplifest para mais tarde recordar.

Sugerir correcção
Comentar