Tresvaliando

Os olhos mudam. Os olhos são das mais injustas das coisas quando criam uma primeira impressão, que é muitas vezes apressada e ignorante.

No soneto lírico de Miranda uma dama faz o autor ir “tresvaliando como em sonho”. As definições dos dicionários não são lisonjeiras para a palavra, entendida como uma forma de delírio, uma perda de realidade, uma falha da razão, um desvario qualquer em que se perde o siso. Camilo vai mais longe num sentido de que quando alguém começa a “tresvaliar”, - "Não me comeces a tresvaliar lá com as tuas valentias”,- “passa-se”, uma boa palavra muito mais moderna para designar a mesma perda de terreno, de chão, de sentido das realidades.

Grande admirador de Sá de Miranda que sempre fui, - meu blogue Abrupto tem uma epígrafe de Sá de Miranda “m’ espanto às vezes, outras m’avergonho”, - sempre me atraiu a palavra “tresvaliando” do soneto. Havia ali um movimento, um voo, uma navegação por sobre as coisas, que ia muito além do delírio. Aliás, como muitas vezes acontece na complicada máquina da mente, a palavra ficava em mim de outra forma, como se designasse uma maneira peculiar de “navegar” pelas coisas, menos lírica, mas mais do gosto, da curiosidade, de amador e de diletante. Diletante, aqui está outra palavra de uso corrente pejorativo, mas que o não é. O Dicionário em linha da Priberam só chega ao mau sentido na quarta definição, sendo que todas as outras são bem-vindas para quem se “tresvalia” como o faz um “diletante” por gosto:

1. Amador de uma arte ou de literatura.

2. Que ou quem é entendedor ou apaixonado de uma arte ou a ela se dedica por gosto, especialmente à música.

3. Que ou quem se dedica a algo por prazer e não como modo de ganhar a vida.

4. Que ou quem procura o prazer ou tem uma atitude superficial, sem mostrar maturidade, profundidade ou responsabilidade.

A que vem tudo isto? A que nestes últimos dias, enjoado até ao limite por ter tanto mal público a fustigar (e que é meu dever, vejam lá, dever, continuar a fazer…) resolvi descansar hegelianamente o “espírito” e descrever como leio “tresvaliando”, ou seja navegando sobre as palavras e não só.

É uma forma de leitura viral, visto que não é programada, são as palavras que me “infectam” e não tem nexo, é como se as palavras fossem a senhora do soneto de Miranda:

Quando eu, senhora, em vós os olhos ponho,

e vejo o que não vi nunca, nem cri

que houvesse cá, recolhe-se a alma a si,

e vou tresvaliando, como em sonho.

Na última semana, e atenho-me a esse período de tempo, tudo começou com Giulio Andreotti. Estão a ver como é estranho? Estando a organizar os livros da biblioteca que veio de Vítor Crespo, vou separando alguns que me despertaram a curiosidade, para neles “passar os olhos”. Eis uma forma curiosa de descrever uma maneira de ler, entre tantas que há.

Trata-se de dois volumes intitulados Visti da Vicino, com uma série de pequenos retratos de personagens do seu tempo, que já não é o mesmo que o meu. É um tipo de livro comum, de encontros e impressões passageiras que dependem muito da perspicácia do observador, da sua escrita e do interesse do personagem. Em Portugal há alguns livros deste tipo. Para citar um do mesmo tempo de Andreotti, existe um de Almeida Santos.

Peguei no Andreotti pelo índice, no fim do livro como é comum na Europa, e vi lá o Totó, ou melhor “Il principe Totó”. E fui ler. De novo, Totó também não é do meu tempo. Tinha uma vaga memória de alguns filmes seus a que nunca achei muita graça, como o Cantinflas, tudo gente que teve um enorme sucesso e que caiu no esquecimento, essa limpeza que o tempo faz, muitas vezes injustamente. Sabia que Totó era príncipe e que de seu nome completo Antonio Griffo Focas Flavio Ducas Comneno Porfirogenito Galiardi de Curtis di Bisanzio. Ou seja, tinha quase todos os nomes da nobreza ducal bizantina, das grandes famílias de Bizâncio que fugiram para Itália após a queda do Império: Focas, Ducas, Commeno.

A sua vida não foi bem a de um “príncipe”, embora pelo menos os italianos o conhecessem como “il principe della risata”, e não custa admirar hoje, à distância, aquela comicidade sempre um pouco caricata e triste que não foi o que atraiu as massas cinéfilas, mas que atrai os intelectuais. Tinha recentemente revisto o fragmento do filme de Pasolini Uccellacci e uccellini, em que há imagens do funeral de Togliatti, o dirigente histórico do PCI, e, talvez por isso, tenha ido em primeiro lugar para a página do Visti da Vicino sobre Totó.

Nela se relata o encontro em 1957 num comboio noturno de Nice a Roma, de um Andreotti, então ministro das finanças, de pijama, e Totó com um blaser de yachtman regressado de um cruzeiro. Falaram do fisco, e vieram a encontrar-se de novo em breve. Andreotti interroga-se sobre o que é que neste homem fazia rir e anota no fim que morreu sem património, só com os títulos. Estão a ver o que é “tresvaliar”?

Depois, logo a seguir, “tresvaliei” para Frei António das Chagas, que nada tem a ver com Totó, mas cujo poema “Conta e tempo” veio ter comigo por um remailer e que me serviu à perfeição para explicar o dilema de quem tem mais curiosidade e “diletantismo” do que tempo para a saciar. Claro que o poema não é sobre isso, mas sobre o Juízo Final, a finitude, coisas mais sérias, mas cada um usa as palavras ao seu serviço e “tresvaliar” é essencialmente devorar o significado alheio, a favor do gosto seu:

 

Oh, vós, que tendes tempo sem ter conta, 

Não gasteis vosso tempo em passatempo. 

Cuidai, enquanto é tempo, em vossa conta! 

 

Pois, aqueles que, sem conta, gastam tempo, 

Quando o tempo chegar, de prestar conta 

Chorarão, como eu, o não ter tempo…

 

E, na mesma semana e sem nexo, continuei a ler The Zhivago Affair, de Peter Finn e Petra Couvée, a muito interessante história do livro de Pasternak e do papel que a CIA e o KGB tiveram quer na sua publicação, quer na sua repressão. É uma leitura mais conservadora, neste meu “tresvaliando”, visto que se espera que quem escreve sobre o comunismo leia este tipo de livros, tornados ainda mais interessantes pelo acesso a arquivos até agora fechados. Mas eu tinha tido um bloqueio pasternakiano (se é que isto se de pode dizer) porque o filme de David Lean sempre me pareceu demasiado meli-melo para meu gosto. Mas, num certo sentido, isso era fiel à intenção do autor, e talvez o deva ver de novo. Os olhos mudam. Os olhos são das mais injustas das coisas quando criam uma primeira impressão, que é muitas vezes apressada e ignorante.

Mas enganaria os meus leitores se não incluísse nesta lista o Trololo russo de Eduard Khil e a sua versão pelo Family Guy, um longo e muito interessante discurso de Varoufakis na Alemanha já este mês, e os notáveis trabalhos de divulgação científica de Brady Haran nas séries Periodic Table of Videos, Numberphile, Computerphile, Sixty Simbols e agora Objectivity. Filmes muito curtos feitos para o You Tube, com excelentes professores que não vem de Oxford ou de Cambridge, mas de uma universidade inglesa do interior, e que representam o melhor que se pode fazer para um público leigo e curioso.

“Tresvaliando” vi esta semana um da nova série Objectivity que pretendia explicar algumas ilusões de óptica. Respondia a uma velha questão que quem ia ao Museu Soares dos Reis no Porto tinha sempre: porque é que a “Cecília” de Henrique Pousão estava sempre a olhar para nós fosse qual fosse o lado da sala em que se estivesse. Aqui a mesma pergunta é tratada com um velho ensaio e desenhos de Sir Thomas Lawrence, numa cena que só os ingleses podem fazer na Royal Society.

“Tresvaliar”, lendo ou vendo, tem nexo? Claro que sim, nem sequer é preciso muito conhecimento do Dr. Freud para saber que é assim. Mas é bom, é mais do lado de Eros do que de Thanatos.

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