Só ele sabe porque não fica em casa

Em noite de 7-1 ao Brasil, o segundo filme-concerto do Curtas Vila do Conde viu Edgar Pêra fazer uma “remix ao vivo” da final da taça Leixões-Sporting.

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Edgar Pêra

“Um desporto para os vossos olhos”, avisava o genérico de entrada do segundo dos quatro filmes-concertos do Curtas Vila do Conde 2014. Antes, Miguel Dias, um dos directores do festival, havia explicado a génese conturbada de Nostra Fides (Live Kick Remix): como é típico dos projectos mutantes de Edgar Pêra, o que começara como uma simples projecção tornou-se progressivamente noutra coisa.

A ideia original era exibir no programa Fora de Jogo És a Nossa Fé, o olhar sobre os adeptos de futebol que Pêra rodara na final da taça entre o Leixões e o Sporting em 2002. O que teve lugar no Teatro Municipal, ao fim da noite da humilhação do Brasil por 7-1 no Mundial, foi um “cine-concerto” em tempo real e circuito fechado: depois de uma breve partida de matraquilhos em palco, Vítor Rua e Chris Cutler sentaram-se aos seus instrumentos e começaram a divagar musicalmente sobre uma manipulação ao vivo das imagens de És a Nossa Fé.

Quem conhece o universo idiossincrático e iconoclasta do cineasta, a sua sofreguidão coleccionadora de imagens e a sua relutância em considerar qualquer projecto definitivamente fechado, já sabe a montanha-russa a que uma sessão destas se pode prestar. A meditação sobre os espectáculos de massas que a “versão original” de És a Nossa Fé trazia foi aqui amplificada pela injecção de imagens infra-vermelhas do público que assistia à sessão e de efeitos 3D artesanais, exigindo os velhos óculos bicolores de película plástica distribuídos à entrada (o “3D dos pobres”, como avisara Pêra antes da sessão).

De repente, os adeptos que vibravam com o Leixões-Sporting eram o mesmo público que assistia ao filme na sala do Teatro Municipal; o cinema e o futebol fundiam-se num mesmo ópio do povo. A cumplicidade sónica de Vítor Rua e Chris Cutler (um com o outro e com as imagens do cineasta) apenas sublinhava a ideia de “toca do coelho” em que a manipulação psicadélica de imagens e sons mergulhava os espectadores.

Tudo isto, evidentemente, faz muito mais sentido para os conhecedores de Pêra, realizador “marginal”, experimental e independente como poucos em Portugal, para quem cada filme é um momento único e irrepetível, que apenas existe durante o tempo da projecção (e do qual Rua e Cutler são, de algum modo, “irmãos” exploradores). Nostra Fides, irregular e imprevisível e desequilibrado como este tipo de experiências ao vivo pode ser, deixou contudo bem claro na cabeça dos espectadores o modo como o cinema, qualquer que seja a sua forma, é uma experiência comunal e colectiva. Para citar o cântico dos adeptos, “só eu sei porque não fico em casa”; Nostra Fides foi uma boa ilustração disso.  

Crítico de cinema

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